sexta-feira

Contrastes - por António Vitorino -

Contrastes
António Vitorino
Jurista
Nesta semana, o País agitou-se com o resultado de um concurso televisivo destinado pomposamente a escolher "o maior português de sempre"... A "escolha" recaiu em Oliveira Salazar, depois de algumas semanas em que sabiamente foi alimentada a disputa com Álvaro Cunhal.
Nas sociedades contemporâneas lemos e treslemos sondagens, resultados de focus groups, inquéritos de opinião e tudo o mais quanto possa fazer perceber o que pensamos como colectivo a partir de amostras. Diz-nos a experiência que nestes exercícios mais do que resultados exactos obtemos quanto muito tendências e mesmo assim num dado momento, naquele "instante fotográfico" que reproduz o estado de espírito dos inquiridos ao responderem e que só muito dificilmente pode ser entendido como tendo condições para perdurar ao longo do tempo.
A "arte" da amostra escolhida e da maneira como a questão é colocada já foi sobejamente estudada e até experimentalmente já se provou como o mesmo universo de pessoas pode responder de forma contraditória à mesma questão, desde que formulada de maneira diferente.
A "ciência das sondagens" tem, aliás, o bom senso de não reivindicar para si própria a natureza da exactidão...
Mais ainda quando estamos perante uma iniciativa que apela à espontaneidade da resposta como foi o caso do aludido concurso televisivo. Espanta, por isso, a tentativa de fazer generalizações a partir dos resultados obtidos, do tipo "voto de protesto" contra a qualidade da democracia que temos! O que a "votação" mostra é apenas que alguns grupos de activistas de causas entenderam que mobilizando-se em torno de um concurso televisivo e incentivando outros a nele participarem acabariam por ter um resultado que... animasse as hostes respectivas. Só isso e nada mais!
O ponto curioso para indagação futura é o de saber porque é que tal activismo se contenta - diria apenas! - com uma vitória no terreno de luta dos... sms! Mas enfim, cada um escolhe as armas que lhe parecem mais ao seu alcance em cada momento...
Mais interessante é o facto de na mesma semana em que surgiram vozes indignadas com o resultado produzido por uma minoria activista num concurso televisivo ter sido afixado em Lisboa um vistoso cartaz - e logo no Marquês de Pombal! - de um partido de extrema--direita centrado numa campanha contra a imigração.
Claro que os defensores da teoria da conspiração decerto acabarão por fazer a ligação entre os dois factos e... concluir que o fascismo está aí de novo!
Temos - felizmente ! - uma democracia madura que, por muitos defeitos que tenha, não treme assim perante um concurso televisivo ou perante um cartaz que se revela um bom investimento para os seus promotores... pela relação custo/visibilidade, claro!
Mas o tom xenófobo do cartaz, exigindo um irrealista "fim" da imigração sob o slogan importado (e "adaptado") da Frente Nacional francesa "Portugal para os portugueses", não deixa margem para dúvidas: a liberdade de expressão em democracia constitui um valor essencial que deve ser preservado, mas em nome dos valores democráticos nenhuma distracção pode ser consentida quanto ao fundo da questão: o combate político e cultural à intolerância, ao apelo ao ódio rácico, à exortação xenófoba e à manipulação das consciências quando se quer fazer crer que as dificuldades de um país se devem aos imigrantes, aos estrangeiros, àqueles que são diferentes de nós pela cor da pele, pelo território de origem ou pela religião que professam, esse combate está sempre e permanentemente na ordem do dia e impõe-se muito mais do que a reacção a um qualquer concurso televisivo.
Acresce, por curioso contraste, que os activistas da "votação" por sms se formaram na retórica colonial de um Portugal pluricontinental e multirracial... Sentirão eles que os protagonistas do cartaz são de facto os seus herdeiros?
Pierre Bourdieu

Obs: Talvez mais do que ao velho Botas que está enterrado, apesar de meia dúzia de saudosistas pulularem por aí..., de que o dr. Jaime nogueira Pito é apenas um reflexo pseudo-institucional com aspirações históricas, aquilo que António Vitorino, e bem, critica (segundo me parece..) é esse ciclo vicioso da sondajocracia que hoje tolhe mais do que liberta a mentalidade do povo português. Ou seja, vivemos enfeudados a essa "sondagite concursal" da mediacracia vigente que aspira a uma permanente quantofrenia, e que não deixa de ser uma forma moderna quer de ganhar dinheiro, quer de dominação - em articulação interesseira com as estações de tv - que delas se servem para efeitos de concorrência e mobilização da opinião pública, porque as necessidades do lucro gordo e imediato a isso obriga. Diria até, sugestionado por este artigo de AV - que neste momento deve estar em Moçambique (seguindo daqui um abraço para ele) - que hoje as democracias estão confrontadas com um novo campo de luta, que já não remete para a velha luta de classes, mas para o próprio campo da luta "científica/técnica" que vende sondagens em massa para a mediacracia vigente.

É, pois, na forma como se orquestram os concursos (de par com as TIC utilizadas) que chegamos a certos resultados lamentáveis. A dona Mª Elisa, conseguiu fazer esse mau trabalho com uma perfeição imbecil que choca as alminhas no além. Nem Manela Moura Guedes faria pior, certamente... E o mais grave nessa aritmética provinciana das sondagens para "tudo e para nada", é que o intelectual de serviço responsável por determinada sondagem que se engana - arrasta sempre consigo as centenas, os milhares de pessoas que o seguem nesse colossal erro, porque a sua palavra tem uma força e uma legitimidade nos media como se fosse um deus (menor).

Ao ler este artigo de AV - chego à seguinte conclusão que, em rigor, decorre da desmontagem das distorções a que os "sondageiros" de serviço submetem a desgraçada opinião pública que temos, quiça ainda mais provinciana do que ao tempo de Salazar, que deu origem a esta reflexão. É que a sondagem de opinião, actualmente, não deixa de ser um instrumento de acção política (e socioprofissional), a sua função mais importante consiste em impor a ilusão de que existe uma opinião pública como reunião puramente aditiva de opiniões individuais, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu (acima na imagem). Um dos propósitos dos sondageiros é, no fundo, mais do que ouvir as balelas de Nogueira Pinto sobre salazar que nunca ninguém sériamente escutou, salvo meia dúzia de amigos alí do Campo Grande que faz o favor de lhe comprar os livros, é mostrar que existe sempre uma opinião pública unânime, e, portanto, capaz de legitimar uma política e reforçar as relações de força que a fundam ou a tornam viável.

Mas o mais dramático de tudo isto é, como António Vitorino sinalizou no seu último parágrafo - com cirúrgica ironia queirosiana - que os activistas da votação se formaram na escola (Colonial da "banana") e na ética colonial do Portugal (pluricontinental e multirracial) do Minho a Timor - e alguns deles ainda se passeiam por aí, arrastando a sua surdez pelas fundações da China com interesses na Europa.

Foram esses que fizeram a transição cínica e hipócrita para democracia, mas se amanhã o regime mudasse e evolucionasse para uma ditadura seriam os primeiros a dizer: "Eu nunca fui democrata, mantive-me sempre ministro das colónias do velho "Botas"...Esses são os ratos que hojes estão bem caladinhos, eles nem sequer falam da situação que afecta o seu partido de sempre: o CDS... São esses os novos restolhos do Restelo!!!