Cães talentosos, deveriam estar no Parlamento, também...
Cães que vão ao multibanco [in Expresso, assin.]
Shaft é o segundo cão-guia de Frédéric. Oito anos é o tempo médio de ‘trabalho’
Shaft move-se no «hall» do hotel com a segurança de quem conhece os cantos à casa. O labrador preto, de cinco anos, só hesita quando se aproxima da porta giratória de vidro, a rodar continuamente, e ninguém o convence a atravessar - nem mesmo o seu dono, Frédéric Gaillanne, 43 anos, presidente da Associação Mira Europe, especializada no treino de cães-guia para jovens. “Avança”, ordena o dono, em francês, e comunica a sua intenção através do arnês (alça metálica com colete), mas Shaft mantém as quatro patas ‘coladas’ ao chão. “Se sente perigo, pára imediatamente. Foi educado assim”, explica Frédéric, invisual desde os 19 anos, na sequência de um acidente de viação. Para chegar a essa fase, a da ‘desobediência inteligente’ - uma das etapas finais da educação do cão-guia - o animal tem um longo caminho a percorrer, que começa na infância, mal deixa de ser amamentado pela mãe. Ao fim de dois a três anos de trabalho intenso (segundo a metodologia da Federação Francesa de Escolas de Cães Guia), está apto a olhar pelo seu dono. A levá-lo ao multibanco, ao local de trabalho ou até à passadeira de peões. Pelo meio, passa por vários estágios: ainda cachorro, é entregue a uma família de acolhimento, que se responsabiliza pela sua educação básica - sempre sob a supervisão de um técnico. Completado o primeiro ano, regressa à escola a fim de iniciar a formação específica, que consiste em responsabilizar o cão para a tomada de decisões. A raça Retriever do Labrador é a que mais garantias oferece à escola de cães-guia da Associação Beira-Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual, em Mortágua; a primeira e única a funcionar no país. Tem 55 cães “a trabalhar”, como diz Ana Filipa Paiva, directora técnica, mas em lista de espera estão mais de 50 invisuais, dispostos a esperar três ou mais anos por um companheiro. A demora é compensada pelo aumento da qualidade de vida do utilizador cego. “Um cão-guia faz toda a diferença”, reconhece João Pedro Fonseca, presidente da escola. Na memória guarda o relato de um associado que lhe confessou ter voltado a sentir-se um cidadão igual a tantos outros. “Com a bengala, tinha de ir a pensar nos obstáculos. Quando levava o cão, conseguia pensar na vida e caminhar ao mesmo tempo”. Para avançar com a candidatura, a mobilidade e a capacidade de orientação são requisitos obrigatórios. Assim como o factor idade. Segundo regras da Beira-Aguieira, que segue a orientação francesa, os cães-guia são entregues (gratuitamente) a jovens com mais de 18 anos, “por questões de maturidade”. Em França, com 15 escolas a treinar mais de 160 cães por ano, a Associação Mira Europe quer dar o próximo passo e “ajudar os menores a cortar o cordão umbilical com a família. Um cão é um factor de integração social”, reconhece Frédéric Gaillanne, que forma dupla há três anos com Shaft. Em parceria com a Fundação Mira, no Canadá, a única a formar cães-guia para adolescentes, já conseguiu trazer 30 cães para a Europa. Quando uma mãe espanhola lhe confessou que o filho, a partir daquele momento, nunca mais ia estar sozinho, “percebi que estava no caminho certo”, assume. Argumentos que não convencem João Pedro Fonseca. “Não é o invisual que guia o cão. As orientações partem do homem, e normalmente, os adolescentes têm pouca mobilidade”, diz. A adaptar-se ao mais recente modelo de bengala, com dois sensores, José Esteves Correia, presidente da ACAPO, reconhece que nenhuma tecnologia “substitui os olhos do cão-guia”. Por enquanto, só eles permitem aos cegos descobrir uma autonomia que perderam ou nunca tiveram. E por isso, não fecha a porta à hipótese dos mais jovens passarem pela mesma experiência,
Textos Maria BarbosaFoto José Ventura
[
<< Home