terça-feira

Um discurso histórico? - por José Medeiros Ferreira -

Um artigo para ler com prudência...
Um discurso histórico? José Medeiros Ferreira
Professor universitário
O discurso pronunciado pelo Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, a 10 de Fevereiro de 2007 em Munique, foi indiscutivelmente importante. Mas será histórico, ou seja, entrará ele para a História?
Em primeiro lugar, a conferência exposta no âmbito das reuniões sobre Política de Segurança, realizadas em Munique no mês de Fevereiro, é um texto que contrasta com as orações habituais do género. É um texto reflectido e de alta qualidade política. As questões são apresentadas de forma desassombrada, clara e quase hierarquizada.
Putin não foi a Munique, centro anual do pensamento estratégico ocidental, para perder tempo, ou fazer perder tempo. Usou a linguagem política e dispensou a diplomática, sem deixar de ser cuidadoso.
Em segundo lugar, o discurso anuncia o retomar de uma política externa independente por parte de Moscovo. Como disse o próprio Putin, "a Rússia é um país cuja história se estende por mais de mil anos e teve quase sempre o privilégio de possuir uma política externa independente". De facto, poucos Estados têm uma política externa independente.
Essa política externa independente é tanto mais necessária para Putin quanto ele considera negativo, e irrealista, um mundo unipolar, com "um só dono e uma só soberania". Ora os EUA, que se aproximam daquela concepção, estão a hiperusar a força militar unilateralmente, a extravasar em vários campos as suas fronteiras nacionais e a impor às outras nações os seus pontos de vista nos domínios "económico, político, cultural e educacional", segundo o antigo oficial da KGB. E pergunta: "Quem gosta disto? Quem se sente feliz assim?"
A resposta é dada pela asserção seguinte segundo a qual, desta forma, "ninguém se sente seguro". Por conseguinte, esse estado de coisas desencadeia uma nova corrida armamentista e, o que mais é, essa política de força encoraja, "inevitavelmente", um certo número de países a adquirirem armas de destruição maciça.
Embora com nuances, entroncam aqui as novas ameaças de terrorismo global.
O Presidente da Rússia propõe que se volte a dar o papel principal na resolução dos conflitos internacionais à diplomacia multilateral, remetendo o uso da força para casos excepcionais, como excepcional é a aplicação da pena de morte no funcionamento dos sistemas judiciais dos países que a admitem...
Em terceiro lugar, Putin tenta relançar as políticas de desarmamento nas prioridades da agenda internacional, recuperando os compromissos tomados nos anos 90, no domínio das armas nucleares e até das armas internacionais. Caso os EUA se dispuserem a retomar esses pontos, a Rússia estará mais disponível para continuar a lutar contra a proliferação de armas nucleares e a combater a actual tendência de vários países para se dotarem de mísseis de curto e longo alcance. E cita as duas Coreias, a Índia, o Paquistão, o Irão e Israel. Caso essa tendência não seja travada, a Rússia tomará as suas próprias disposições, avisa.
Em quarto lugar, Putin chama a atenção para a necessidade de se prevenir o mundo contra a militarização do espaço, uma ameaça que considera real e capaz de inaugurar uma nova era nuclear.
Ora, se nos lembrarmos, digo eu, de que a China está a desenvolver sistemas de artilharia anti-satélites e que já é capaz de atingir os meteorológicos que ela própria lançou, compreende-se melhor como "a guerra das es- trelas deixou de ser uma fantasia".
Em quinto lugar, o discurso de Putin tanto coloca os pontos nos iis nas questões em que discorda do comportamento dos EUA, e também da NATO e da UE, como constantemente se apresenta dialogante. Começa por citar Franklin Roosevelt, o Presidente do tempo da grande aliança entre os EUA e a Rússia, oferece os seus bons ofícios para neutralizar os perigos da utilização pacífica da energia nuclear, recorda o seu empenhamento contra a proliferação das armas atómicas e promete transparência no fornecimento de gás e petróleo ao preço do mercado mundial.
Putin veio assim apresentar o menu da Rússia nas relações internacionais depois do efeito de hibernação do seu poder nos últimos 15 anos. Joseph Nye dirá que a política russa sofre o efeito de pêndulo. É certo, mas até o dirá o movimento contrário.
Tudo aponta para importância futura do discurso do Presidente da Rússia em Munique. Dir-se-á mais tarde "o discurso de Munique" de Putin, como ainda hoje se fala, por exemplo, no "discurso de Zurique" de Churchill?

Com efeito, só as hiper-potências se podem reclamar de ter uma política externa independente, ou melhor, relativamente autónoma, pois basta um Tsunami ou qualquer outro factor natural à margem da vontade humana para desequilibrar qualquer formulação por parte duma chancelaria. Pena é que essa declaração de vontade do sr. Putin, que é um pigmeu político que parece só entender de gatilhos e de venenos, não seja acompanhada de uma política de defesa e promoção da democracia pluralista e dos direitos humanos. Mas o Ocidente também não poderá reclamar muito quando do outro lado do Atlântico tem o maior aborto político à frente da White House que a América já conheceu. Além de que está hoje provado de que de pouco ou nada serve fazer essas declarações de vontade. O terrorismo por um lado, e o ambiente por outro, são vectores que contrariam aqueles resíduos da Guerra Fria, apesar de cada actor poder querer mostrar erecções políticas que depois terão de ser mantidas a toque de viagras diplomáticos. Bastará uma Cimeira de Davos para remeter para o caixote do lixo da história a proclamação extemporânea de Putin, que julga ainda viver no tempo dos czares... Uma questão para Medeiros Ferreira: o que fará hoje a Rússia de Putin se a China fizer finca-pé num dossier económico, militar ou ambiental?! Provavelmente, nada!! Que se saiba, ainda se mantém a actual pentarquia no CS na ONU. E a reforma da ONU é mais uma intenção proclamada do que realizada... E a mesma questão se poderá colocar aos EUA..., daí a relativização do valor conceptual que a política externa independente, como sistematiza Medeiros Ferreira, tem hoje, muito diverso do tempo da Guerra Fria. Teremos todos de reler o velhinho Aron, mas com outros olhos e outras correlações, porque a natureza dos problemas mudou, alterando aqueles conceitos clássicos das RI que fizeram a sua carreira desde o post-Guerra Mundial (1945) até à queda do Muro de Berlim (1989) e as revoluções de veludo a leste. Contudo, força é força!!!, mas o Poder tornou-se mais volátil, logo também mais relativo. Daí a relativização das bujardas do alegado assassino de jornalistas hoje no poder na Rússia a quem os diplomatas e os chefes de governo do Ocidente apertam a mão.

E se ele é mesmo um assassino? O facto de lhe apertarmos a mão, fará de nós outros assassinos? Mais outra questão a que Medeiros Ferreira poderá responder, se souber, evidentemente!!