sexta-feira

As memórias do Sr. Scargill - por António Vitorino -

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As memórias do sr. Scargill
António Vitorino

Jurista
A conflitualidade social faz parte integrante das sociedades democráticas. Mais ainda quando estão em causa reformas que afectam situações consolidadas ou expectativas geradas ao longo do tempo. Vem isto a propósito das referências feitas por vários comentadores ao relacionamento do actual Governo com o movimento sindical em geral e com os sindicatos dos professores em particular. A crer nesses comentários, um elevado índice de tensão entre o poder político e as estruturas sindicais constituiria apanágio de um "governo de direita", sendo, por definição, menos conflitual a relação que se estabeleceria quando a esquerda está no poder.

Esta tese não tem exactamente uma demonstração histórica irrefutável.

Basta recordar os tempos em que os governos do PS, então liderados por Mário Soares, enfrentaram uma contestação muito acesa por parte dos sindicatos da CGTP.

Tal como basta recordar que durante vários anos as relações do Governo do Partido Socialista Operário Espanhol (para não ir mais longe), então liderado por Felipe González, com as centrais sindicais (inclusive a de inspiração socialista - a UGT) foram particularmente conflituosas, com reflexos mesmo nos alinhamentos internos no respectivo partido.

Esses períodos de conflito muito vivo foram ultrapassados com o decurso do tempo, com a prossecução das reformas (que, no caso espanhol, desembocou mesmo num Pacto da Moncloa assinado por patrões e sindicatos com o Governo) e com a superveniente alteração das circunstâncias políticas.

Mas se quisermos escolher um exemplo de uma estratégia deliberada de afrontamento com os sindicatos, não apenas centrada no plano de uma luta reivindicativa, mas como mais amplo "jogo de poder", então teremos de ir à década de 80, ao Reino Unido, e recordar o conflito que opôs a então primeira-ministra Margareth Tatcher ao sindicato dos mineiros, liderado pelo célebre Arthur Scargill. Aí sim, encontraremos um exemplo de escola de uma estratégia política que visava "partir a espinha aos sindicatos", com base numa leitura ideológica e de uma acção de confinamento do poder sindical. A vitória do Governo inglês sobre a estratégia radicalizante dos sindicatos viria a abrir caminho para as políticas liberais dos sucessivos governos conservadores e viria também a criar as condições para que, dentro do próprio Partido Trabalhista britânico, a Confederação dos Sindicatos (TUC) perdesse terreno e peso político (através da abolição do sindicato de voto de que dispunha no Congresso do Labour que lhe permitia determinar a escolha do próprio líder do partido).

Se analisarmos o discurso do actual Governo e o significado dos sucessivos afrontamentos com o movimento sindical, não será difícil perceber em qual destas duas tradições se insere o tipo de conflitos sociais actuais.

Embora importe reconhecer que a linha que separa o confronto em torno de reformas em concreto de uma demarcação de campos mais profunda, geradora de roturas com efeitos a mais longo prazo, seja por vezes bastante fina.

A transposição dessa linha e a passagem do primeiro para o segundo tipo de confrontação não pode, contudo, ser determinada apenas por um dos campos em presença e, para mim, é evidente que o Governo do PS nunca a ultrapassará.

Mas o risco de o mero confronto sindical em torno de reformas em concreto passar para um plano essencialmente de combate político, de que poderia resultar, como alguns receiam, o desmantelamento do movimento sindical, só se poderia produzir se os sindicatos consentissem na sua instrumentalização partidária, e assim cometessem o erro de optar pela via da radicalização inconsequente.

Por radicalização inconsequente refiro-me à assunção, como postura política, de uma posição intransigente de imobilismo, de rejeição pura e simples da necessidade de reformar o nosso Estado social e de defesa do status quo porque... sim! Um pouco ao estilo "há reforma?... sou contra!". Assim se coloca o dilema sindical hoje: negar a necessidade de reformas para defender situações adquiridas, ou pretender fazer valer os seus argumentos sobre o conteúdo das reformas, embora aceitando o princípio da sua necessidade. Este dilema só se resolve consoante se dê prevalência apenas à responsabilidade dos sindicatos perante os seus filiados ou à sua responsabilidade perante o conjunto da sociedade enquanto parceiros sociais, que é a melhor forma de defender os interesses legítimos dos seus próprios filiados. A escolha por um ou outro dos caminhos acabará por ter efeitos muito concretos sobre as suas próprias lutas e reivindicações no curto prazo, mas também sobre o rumo do País e o modelo de relações sociais do futuro.Se duvidam leiam atentamente as memórias do sr. Scargill.
O sublinhado é nosso.

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Notas Macroscópicas

Mais uma vez é com gosto que tentamos aqui alinhar algumas derivas ao artigo-ensaio de António Vitorino, dado que ele parece só escrever artigos com densidade teórica que só percebemos à 2ª. Não porque ele escreva mal, nós é que não tínhamos pensado na matriz de relacionamento que entretanto se abriu entre o governo socialista e o movimento sindical português. Eu, confesso, também nunca tinha ouvido falar do sr. Scargill, e não gostaria de ter estado na sua posição, diante das garras da então - "Dama de Ferro" - mas menos ainda desejaria encontrar-me na posição de Carvalho da Silva - que além de ser um "quadro" inamovível do sindicalismo luso - ou seja, uma daquelas peças Luís XV que já se confunde com as paredes do casarão, parece agora corporizar aquela ideia de que a democracia está ameaçada não pelo regime de partidos, não pelos militares nem pelos maçons (que perderam a sua influência nem já conseguem fazer cair governos - quanto mais elegê-los) mas pela orientação contemporânea que o dito movimento sindical está a imprimir às suas estruturas internas cujos resultados estão à vista de todos: arruaças sistemáticas, umas "com o rabo de fora", outras também. São flagrantes a mais...

Regressando ao RU, é sabido que os mineiros britânicos constituem um dos corpos sociais mais radicais e politizados do país, em Portugal esse papel parece ter equivalente funcional na CGTP - que ainda não percebi se foi ela que fugiu ao controlo do PCP, ou se foi este que já desistiu de a tentar pôr na ordem. Até porque um destes dias Sócrates vai ao Parlamento discutir o estado da nação e - na interpelação das várias bancadas parlamentares - engana-se e em vez de responder a Jerónimo de Sousa - cunha-o com o nome de Carvalho da Silva. Um dos problemas que aqui nos parece não ter solução à vista é a inflexibilidade em que já caíu a CGTP/PCP - e porquê? Porque ela rejeita categóricamente a noção de risco - que só deverá ser aceite (segundo essa dupla) pelos grupos sociais mais competitivos e melhor remunerados. Por maioria de razão, os grupos sociais menos competitivos querem garantias continuadas (protecção dos seus postos de trabalho, melhoria dos seus rendimentos e mais adequadas pensões de reforma).

Neste contexto difícil da situação económica e social nacional, é capaz de ser mais provável uma de duas coisas: ou alguém "parte a espinha" ao sr. "Scargill Carvalho da Silva" (leia-se CGTP - há 30 anos alapado ao poder, sem rotatitividade...mas que lição de sindicalismo/democrático!!!) ou então, hipótese que me parece mais desejável e adequada, incorre-se num renascimento das utopias dos crescimentos (lineares) a prazo, ainda que depois o (neo)liberalismo ceda e os mercados se deixem regular mais em função dos interesses daqueles que - justamente - os sindicatos procuram defender: - os menos competitivos.

Mas sejamos honestos e justos, os sindicatos - partidarites à parte - estão entalados entre dois fogos ferozmente cruzados: os governos dos Estados que não têm grande espaço de manobra para cedências à mesa das negociações, e a globalização competitiva - via pressão da constelação do neoliberalismo reinante no sistema capitalista, o qual gera a tal dualização a nível de cada sociedade e a nível mundial, ao valorizar os comportamentos competetivos mas, em contrapartida, excluindo os comportamentos orientados para a segurança e para a reprodução de estatutos sociais que não sejam competitivos.

Esta dualização é que é fracturante, e o governo ao não conseguir aplacá-la está também a frustrar a terrível expectativa da igualdade que contribui para um sentimento de coesão social limitado, abrindo assim uma oportunidade de recrutamento eleitoral por parte de forças políticas nacionalistas (ou mais radicais) para explorar as reacções sociais (e emocionais) contra as imposições da tal globalização competitiva (neste caso de efeitos predatórios junto dos segmentos da população mais desprotegidos).

Julgo que perderão todos, ou melhor - perdemos todos - se chegarmos à conclusão que o processo de modernização nas relações económicas não se fizerem, i.é, o pior seria impedir o ritmo das reformas comprometendo, por extensão, a modernização por coesão, diminuindo gradualmente as diferenças entre as sociedades e as economias europeias, o que parecia ser um objectivo que estava ao alcance dos Estados nacionais europeus, coordenados numa plataforma comum estabelecida em Bruxelas que ora tem à sua frente um actor político menor - que tem ambição mas não tem capacidade (o que é crime) - na medida em que tem ajudado a degradar não apenas o sistema económico europeu, como também - o sr. zé barroso tem contribuído activamente pata diminuir o estatuto geopolítico da Europa. Mas cremos que António Vitorino põe o dedo na ferida quando sistematiza o seguinte:

Assim se coloca o dilema sindical hoje: negar a necessidade de reformas para defender situações adquiridas, ou pretender fazer valer os seus argumentos sobre o conteúdo das reformas, embora aceitando o princípio da sua necessidade.

Esperemos, contudo, que não suceda a Carvalho da Silva o mesmo que sucedeu ao burro de Buridan - equidistante que estava entre um fardo de palha e um balde de água - acaba por morrer por tanta hesitação...

Mas o que esperamos sinceramente é que a economia portuguesa cresça a um ritmo maior para que os portugueses possam aumentar definitivamente o seu padrão de vida e o seu nível de bem-estar. Como povo acho que o merecemos, mesmo sem os sindicatos...