quarta-feira

Razões à beira do abismo - por Vicente J. Silva -

  • Mais um excelente artigo de VJS que valerá a pena ser lido e meditado.
Razões à beira do abismo Vicente Jorge Silva Jornalista Israel tem razão quando alega que os raptos dos seus soldados em Gaza e na fronteira com o Líbano foram provocações que não podiam ficar sem resposta. E tem razão quando argumenta que só uma resposta dura seria compreendida pelos provocadores. Tem ainda razão quando aponta a coincidência dos actos do Hamas e do Hezbollah como a prova provada de uma conexão mais vasta, envolvendo a Síria e o Irão, protectores e armadores dos fundamentalistas islâmicos que visam a destruição do Estado judaico. Israel tem razão em invocar o direito a defender-se. Mas terá o direito de atingir objectivos civis indiscriminados, sob o pretexto de que os islamitas se refugiam deliberadamente entre populações indefesas, sujeitando-as, por isso, aos actos de retaliação? Terá o direito de arrasar as bases de sobrevivência de um país, o Líbano, só porque o frágil Governo de Beirute não tem, manifestamente, capacidade para desarmar o exército do Hezbollah - e as instâncias internacionais nada fizeram, até agora, por isso? Terá o direito à desproporção dos meios e à escolha arbitrária dos alvos a abater? Esse direito não legitimará a reivindicação de outro direito idêntico por parte do inimigo, desencadeando a engrenagem cega das razões da guerra? Israel ataca com toda a força o inimigo mais próximo para fazer chegar a sua mensagem ao inimigo mais distante e que maneja na sombra, em Damasco e Teerão. Atacar a Síria seria trazer o Irão para a guerra - e abrir a porta a um apocalipse regional no Médio Oriente que, pela lógica imparável das escaladas, poderia abrasar o mundo. Israel sabe-o e os seus inimigos também. Como aconteceu no passado, a Palestina e o Líbano são, assim, os teatros imediatos e permitidos dessa "guerra proibida", ainda impensável - sobre a qual se projecta um interdito, um "no trespassing". Só que um imprevisível passo em falso poderá rasgar o tabu, como tantas vezes ocorreu na história das "guerras proibidas". Como medir e prevenir esse passo em falso, esse fósforo acidental que incendeia a pradaria e conduz a caminhos sem regresso? A partir de que momento é que a fuga para a frente, a atracção do abismo se revelam inelutáveis e porventura, até, desejados? Não será uma pulsão irreprimível na cultura fundamentalista do "martírio" purificador? E não poderá sê-lo, também, para os próprios israelitas, se acaso não virem outra saída para romper o complexo de fortaleza assediada em que se sentirem definitivamente condenados a viver? É hoje possível observar, com a maior clareza, a dimensão assustadora dessa caixa de Pandora que foi a aventura iraquiana, por mais que os seus fervorosos cruzados façam tudo para iludir a questão. O Iraque não se tornou apenas um pântano sem saída para os Estados Unidos e um dos principais centros de irradiação do terrorismo internacional. Por causa do Iraque, o conflito judaico-palestiniano foi praticamente apagado do mapa das preocupações da Administração americana, cada vez mais prisioneira das opções políticas e militares israelitas. Por causa do Iraque, reforçou-se o eixo xiita e ampliou-se enormemente a área de influência do Irão. Ainda por causa do Iraque, a libertação do Líbano da tutela síria não conduziu ao fim anunciado da sinistra dinastia Assad, que se viu reforçada com o providencial apoio iraniano. Uma protecção que passou a ser ainda mais estreita depois dos recentes ataques israelitas contra o Líbano. Evidentemente, o enredamento americano na teia iraquiana não serve para desculpar a impotência generalizada da comunidade internacional relativamente ao Médio Oriente (com destaque patético para a Europa). Mas sendo as coisas o que são e sendo a ONU o que infelizmente continua a ser, o calamitoso desastre da intervenção no Iraque deixou os Estados Unidos de mãos e pés atados para funcionar como única potência com capacidade para arbitrar e desarmadilhar o confronto israelo-palestiniano. É por isso que crescem cada vez mais as vozes críticas nos EUA, incluindo entre os republicanos, ao isolamento e enfraquecimento da superpotência americana por causa do Iraque e do alinhamento incondicional com Israel. Israel tem razão em defender-se contra as agressões fundamentalistas, mas é preciso lembrar que o caldo de cultura do islamismo radical - e, em concreto, do Hamas e do Hezbollah - foi largamente alimentado pela humilhação histórica imposta aos palestinianos. Isso não torna decerto o terrorismo islâmico "compreensível", mas também não absolve as culpas próprias de Israel e dos Estados Unidos nesta corrida para o abismo.