Metamorfose - de Kafka -
- Metamorfose:
- - Representação de cavalo, tartaruga e peixes para produzir efeito de transformação utilizando efeitos de transparências. Trabalho realizado em 1999 e permanecendo na coleção particular do pintor. Obra premiada em exposição em São Paulo - Brasil.
- Do pintor peruano Hugo Espíritu residente em São Paulo - Brasil.
- - Mas a metamorfose (M.) que Vos quero aqui falar é outra: mais social e menos artística. Essa ideia de transformação sempre me fascinou. É uma partida que nunca se sabe como termina, e na obra de F. kafka a descrição da M. que Gregor faz - um caixeito-viajante, que trabalha arduamente para sustentar a sua família, é paradigmático do que aqui procuro denunciar.
- - Gregor sempre zelou pela vida da sua família, proporcionando-lhes uma vida confortável. Era a trave-mestra da família. Tudo pagava, até os estudos de violino à irmã. Mas o que deprime - embora seja uma realidade constatável nas nossas vidas - nem sequer é o aspecto algo repugnante de Gregor. O que deprime e angustia são as progressivas e erráticas transformações das pessoas daquela família que, a par e passo, o vão abandonando à sua sorte.
- - Daí que tenhamos começado por sugerir que a n/ ideia de M. não é a de degração física patente na transfiguração física de Gregor. É, de facto, a ideia da transformação do ambiente humano que o envolve e o asfixia que é hoje sintomático para o ambiente das nossas sociedades. Seja na relação das pessoas entre si, na relação das pessoas com as empresas/organizações (mercado de trabalho) ou ainda no nível das relações das pessoas com o Estado - que envolve registos de poder, influência e autoridade que também se degradam e, aos poucos, vão dando retratos das sociedades do nosso tempo.
- - Antes da transformação a família trata Gregor com doçura, agradando-lhe sempre. Tanto mais que era o sustento da casa. Metamorfoseado em insecto, incapaz de trabalhar e de ganhar dinheiro, Gregor passa de bestial a besta e visto como um estranho imediatamente ostracizado pela família que antes o agradava em tudo. Gregor passara de um amigo a inimigo. Isto não pode deixar de me fazer lembrar as condutas que o Estado desenvolve com certos empresários, com a sociedade e até com a generalidade dos cidadãos. Mesmo em democracia ditas pluralistas.
- - Gregor passou a ser um fardo, um verme que urge esborrachar e jogar porta fora. Primeiro tiram-lhe a mobília do quarto, depois não lhe fazem a manutenção do quarto, daí o mau cheiro e o aspecto nauseabundo que se vai acumulando no microcosmo de Gregor. O seu quarto passa a ser uma espécie de depósito de lixo, uma imundíce pegada. Todos lhe batem: o pai pontapeia-o, a irmão joga-lhe maçâs, a empregada manda-lhe cadeiras... Toda a família o maltrata e despreza.
- - O pai outrora gordo e andrajoso recuperava energia e firmeza; a mãe outrora doente asmática começa a ter sucesso no trabalho que faz; a irmã uma dorminhoca adquire auto-estima; até a sopeira se inscrece num urso de línguas e de estenografia.
- - No fim todos convergem num ponto: verem-se livres de Gregor, dessa criatura imunda que é, de todo, a única criatura que permanece fiel a si mesmo e à raça humana. Por isso é que a morte de Gregor é vista por todos como uma felicidade há muito desejada. E todos passaram a ter - depois disso - ainda mais vontade de viver e de se divertirem.
- - Esta lição de vida marcou-me. Há mais duma década que não passava os olhos por Franz Kafka e é, verdadeiramente, um escritor genial, seminal que nos oferece aqui, de forma tão simples quanto paradigmática, um traço do nosso tempo, uma definição de como certas pessoas se comportam entre si, em sociedade e no quadro das relações com a Administração (leia-se - as autoridades do Estado). Enfim, revela-nos uma faceta muito constante no homem: o pior.
- - Se fosse ministro da Educação - e deixo a dica para ajudar a senhora ministra da Educação - Lurdes Rodriges e, de caminho também a srª Isabel Pires de Lima - min. da Cultura) - mandaria imprimir meio milhão de exemplares desta Obra do kafka e pedia que fosse distribuida pelo governo, pela sociedade, à porta das escolas, museus, bibliotecas e até junto às discotecas. Procurando com este gesto homenagear este autor mas, acima de tudo, levar a pessoas a pensarem um pouco no padrão de relações que desenvolvem umas com as outras, humanizá-las, afinal. Sem isto jamais se conseguirá contruir uma nova sociedade, um homem novo...
- - Gregor representa em boa parte o meu herói: o tipo que tem valor, que se esconde, o discreto mas o mais sábio de todos com quantos se dá. Farto de ser explorado por aquela cambada de energúmenos e parasitas - da sua família - que o exploram até à medula, e depois o maltratam, decide desmascarar tudo e todos. E antes de morrer Gregor dá-lhes mais uma lição: afinal, a família enquanto precisou do dinheiro dele tratava-o com dignidade, depois ostracizou-o como se ele fosse um vil canalha.
- - Isto não deixa, em meu entender, de constituir uma extraordinária caracterização do nosso meio político, não deixa de colorir as relações entre a economia e a política, a economia e a economia, a política e a política nesta pornografia que nos é dado viver e que responde pelo nome de meretriz da globalização contemporânea. Um tempo em que, quando deixamos de ser materialmente úteis, dita as regras do jogo: e foram, são essas regras do jogo que Gregor de Kafka desmascara majistralmente pondo a nú essa transformação canalha da qual a mesquinha condição humana parece não conseguir apartar-se.
- - Ao denunciar este oportunismo, este cinismo, esta adulação vil que umas pessoas nutrem pelas outras tendo por móbil certas contrapartidas, Kafka reflecte bem a crueza de certas metamorfoses e o desgosto que, não raro, o homem continua a inflingir ao seu próprio semelhante mostrando que ainda é bem pior do que os animais em fúria.
- PS: Este artigo é feito em homenagem a Franz Kafka pelo muito que aprendemos com ele e e em ordem a tentar não cometer os erros e os vícios que ele denuncia através de Gregor. Assim quando cada homem, cada um de nós pensar em transformações lembrar-se-á sempre de Gregor e de Kafka...
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