Teletragédia planetária (ainda o Papa)
Ainda o Papa, tal o amor que lhe temos, descurando, talvez sem o sabermos, que estamos a adorar a Deus quando nos referimos a qualquer homem, nosso irmão. No fundo, só nos libertamos e aperfeiçoamos quando nos totalizamos, quando conseguimos abraçar o mundo e criar outro igual, ou maior ainda na mente dos nossos amigos. Ou conhecidos - que depois se tornam amigos. Pelo caminho, já se sabe, sempre pululam uns "amigos" especiais, que querem ser mais iguais que outros, imperfeitos e mordidos pela inveja, pelo ciúme, pela insegurança, pelo complexo, pela contradição e incoerência do seus valores com as suas acções, tropeçando nas palavras e nos actos que os tolhem, tentando tornar-se indiferentes na presença, mas sempre altivos e arrogantes, artificialmente ausentes, querendo, contudo, ser omnipresentes - quando não omnicientes, enfim, tudo coisas melindrosas que só os homens grandes sabem ver, de longe, ié, televendo como quem radiografa muro e paredes com telhados de vidro.
Vem tudo isto a propósito da teletragédia planetária que assomou Roma, a janela do mundo. Interrogo-me porque tal sucede. É certo que o Papa sempre arrastou multidões, é por natura um fenómeno universal - na base da fé, da crença, do mistério, é um mundo em cada um de nós. Um fogo explosivo que arde dum momento para o outro, sem que a razão seja chamada nesse processo hiper-emocional. São os nervos, as emoções e as motivações a comandar o processo comportamental.
Dois, três milhões em Roma é muito. É muito calor, muita gente, muito sangue, muita respiração, muito encontrão, é muita sede e muita fome - tudo aplacado pela fé, mas também pela aventura de colher uma experiência emocional diferente.
Porquê, afinal, tantos milhões num funeral que bem podia ser assistido pela televisão, à semelhança de muitas viagens que o Papa fez em redor do mundo?! Parece que a morte virou festa. A ser assim, também queremos todos morrer, e depressa! A questão é tanto mais legítima dado que o mundo Ocidental pôde ver a tragédia do presidente Kennedy em directo. E também a guerra do Vietnam e muitas outras guerras que hoje nos interrompem o jantar e nos roubam a sobremesa. Quando não o próprio sono. Porque tentar adormecer sabendo que a 3 ou 4 mil kilómetros do nosso país se matam homens à paulada, não é simpático. E isso tira o sono, pelo menos a mim, que sempre dormi mal. E a coisa já lá não vai com Lexotan ou Kainever. Por isso, tenho maior facilidade em abrir a porta a um amigo que me procure às 5 da manhã, para um chá ou uma conversa sobre o estado do tempo em que o próprio planeta se tornou, numa espécie de meretriz que tem as estações trocadas. Estamos na Prima-Vera e parece Verão, no Verão chove. No Inverno há seca. Enfim, até o clima se tornou turbulento, imprevisível. O tempo deixou de ser amigo do Homem. É um jogo do gato e do rato, toca e foge.
Mas não percamos o filão d'ouro: o Papa e as multidões em seu redor, mesmo morto. Porquê??? Com Kennedy a TV agarrou o directo. Apanhou o acontecimento até às visceras, apenas só com 1h. de atraso sobre o assassínio. Nunca mais largou o acontecimento. E é, hoje, 40 anos volvidos, entretanto agudizados e acelerados por uma intensa revolução tecnológica que revolucionou os meios de comunicação e a forma de ver e compreender a vida e o mundo, que nos encontramos. Ou seja, estamos permanentemente sob o efeito dos flashes da imprensa, do olho da tele-objectiva que tudo vê. Menos a alma - que tudo sente, como dizia Luís Vaz... E se este fosse vivo, que cobertura faria do acontecimento?! E, já agora, se o Pessoa ainda andasse cá, bebia tinto ou branco, no Martinho da Arcada ou na frequentaria a velha Pastelaria Mexicana, já que a Roma virou hamburgueria???
E foi assim que assistimos - quase em directo - como se o assassínio fosse feito por encomenda ao alfaiate - ao abate de J. F. K. Ora a morte natural do Papa - faz-me lembrar um pouco a tragédia de Kennedy - transposta para o presente. Quase meio século depois vivemos a sua omnipresença, agora não já por intermédio da rádio - que na altura era o Rolls Royce dos media - mas através da televisão e da Internet. Imagino o que seria hoje Dallas - com os meios de comunicação disponíveis... Ate parece que já estou a ver espirros de sangue a mancharem uma qualquer tele-oboejctivo que passasse próximo do carro de Kennedy...
Tudo a acontecer num dia especial: o dia 7 de Abril de 2005 - foi o dia em que a Telefonia Sem Fios (TSF) em Portugal fez uma edição radiofónica para surdos... Não é isto admirável!? Qualquer dia, por este andar, até cegos pilotam os caças F17 ou outros que os americanos já não queiram e exportem para a periferia do mundo, que os compra dando - como moeda de troca a base das Lajes - nos Açores... É o progresso.
Ora é essa omnipresença que hoje, por maioria de razão, vivemos intensamente por morte de João Paulo II em todo o globo - despertando uma emoção planetária.
A este propósito gostaria de contrastar as declarações do ditador Fidel Castro com a de cubanos no exterior, e de muitos africanos que ainda estão acorrentados dentro dos seus próprios países, feitos prisioneiros pelos seus próprios líderes. Ora foi este trajecto que foi interrompido com a morte de João Paulo II.. Gostaria de ver reacções de Castro aos soluços, com avanços e recuos no tempo, agora misturados com a voz de Lee Oswald - registada aquando da emissão de rádio em Nova Orleães.. Qualquer dia há um assomo de racionalidade e aparecem 1000 Oswald em Cuba tentando acertar na cabeça mais ditadora do hemisfério... Aceitam-se apostas...
É certo que na cabeça daquele ditador, que acorrenta o seu povo hà meio século e nem com trambolhões que mancham o chão - descobre as virtudes da democracia, o tempo de Castro é o mesmo que o tempo do putativo assassino de Kennedy. O tempo da rádio e dos jornais, era por aí que as pessoas estavam telepresentes e teleassistiam à tragédia de Kennedy.
Hoje o mundo mudou, apesar do ditador Castro ser ainda o mesmo, mas o drama do mundo ao ver um homem envelhecido e doente partir - ultrapassou as fronteiras exclusivas da fé, ou melhor, há momentos que a religião volta a assumir os comandos do mundo, como outrora em que César e Deus estavam concentrados no Papado, e a decidir todas as agendas políticas do mundo - que hoje, por tristes razões, desaguam em Roma.
No fundo, aquelas multidões são tremendamente egoístas, pois é da afectividade delas próprias que se trata.
Tiram férias, não vão trabalhar porque a fé fala mais alto e manda na economia e é, qui ça, mais produtiva.
Querem libertar-se do medo da vida e da morte, expiar os seus pecados, estar em conjunto para quebrar a solidão que sentem, enfim, estar no mundo, para contarem, para se sentirem vivas e não viverem a vida vegetando.
É assim que leio as motivações daqueles milhões de pessoas em Roma: misto de aventura, fé, mistério e uma busca incessante de religiosidade para descobrirem um sentido para as suas vidas, hoje sem significado. É querer estar com os grandes da História para partilhar o seu poder, a sua influência e a sua autoridade. Ora isto já não releva apenas para o domínio da religião e da fé, nem tão pouco, para o domínio da política, há aqui algo mais totalizante, talvez um tempo de drama e de tragédia religiosa e política ao mesmo tempo, drama suprapolítico, tragédia infrapolítica. O povo fica órfão, a alta política do vaticano fica, agora, e por muitos anos até que o novo Papa encontre o registo certo, deixada num abalo sísmico, planetário.
No fundo, a tragédia de Roma é hoje a drama do mundo, que afecta o curso da política mundial. E os ventos de tristeza que sopram do Vaticano são mais do que as ondas da rádio e da televisão. Roma, o mundo, a vida privada e religiosa de milhões de fieis e crentes está agora sem piloto, parece - de repente - que o navio se soltou no oceano, perante vagas de 15 metros, ameaçando toda a tripulação.
Julgo que a morte do Papa terá muitas inconsequências, a maior parte delas imprevisíveis, como que a consumar uma tragédia humana. Para a minha geração - que nasceu a mio da década de 60 do século XX, esta é talvez, descontando a morte trágica da Princesa Diana, que deu uma péssima imagem de marketing aos travões da Mercedes, a 1ª teletragédia da história humana causada só por um homem. Teletragédia vivida e presenciada em directo à superfície do globo. Mostrando que o satélite relé foi a estrela nova, e, dessa forma, marcando o destino comum. Mesmo para os não crentes ou católicos que foram envolvidos nesta rede mundial de compaixão e dor. Tudo isso nós vivemos, de férias, trabalhando, blogando, investigando, pintando, traficando, negociando, pensando, amando, fingindo, enfim, representando a nossa propria angústia da espécie humana. Tudo porque temos medo da morte, desse dia fatal para o qual ainda não há resposta. Eis o mistério.
A todo o custo queremos viver qualquer experiência extraordinária, numa espécie de simbiose do espectáculo e da participação. Depois aquela malta regressa a casa e a primeira que faz quando chega ao aeroporto é pizar o companheiro, furar a fila para apanhar táxi, ofender os automobilistas, dar tiros, matar, moscas e pessoas, cuspir pelo vidro da janela do carro - de tal forma que o escarro volta a entrar pela janela de trás inadvertidamente aberta, fugir aos impostos (com o Estado que temos é desculpável), ser mau pai e mãe, bater nos filhos, consumir drogas, enfim, ser os cidadãos ilustres que já todos conhecemos - e que contrasta com aquele rebanho obediente ao Pastro que jaz...
E agora, como nos vamos separar desta tragédia? Haverá membrana que nos salve? Ou será que ficamos presos ao próprio écran - chorando num lado e depois fazendo zaping para a 5 das celebridades - para encontrar aí outro tipo de repasto, porque o tempo não pára e o homem não vive só de fé. Precisa também de se prostituir com programas "educativos e formativos"... tudo, porque a malta gosta..
De tudo resulta que Roma, o mundo, pode abrir um caminho sinistro, desencadear forças desconhecidas e gerar a incerteza nas almas que buscam a todo o custo uma nova referência sem, contudo, poder esquecer a forte e luminosa imagem deste já ícone do séc. XXI, a imagem de João paulo II, uma luz em projecção nos corredores do Vaticano - a perder de vista..
Amén
Nota mórbida: confesso que com edifícios assim até me apetecia morrer já, só para ver o resultado da morte.
Segundo consta, é tão bom que o gosto não se deixa partilhar, pois quem já sabe a resposta não democratiza
a solução. E é esse terrível enigma que nos faz recear, apesar do Papa ter defendido - "Não tenhais medo"
Pois eu acho, se Sua Santidade me permite, que continuaremos a recear não só pela morte, mas também, e sobretudo, pelos nossos políticos, pela nossa economia, pelos indicadores dela que não saíem do vermelho, enfim, pela caristia de vida que nunca mais é abençoada. Costuma-se dizer que Deus é brasileiro, pois agora digo: e porque é que o próximo Papa não é português!? Já o estou a ver D. José Policarpo, sentado no Cadeirão do sucessor de Pedro - fumando SG Gigante (mata ratos quando for a África e América Latina), aos 4 de cada vez, parecendo uma chaminé, alinhando os discursos das encíclicas que irá ler ao mundo, com o Pre. Agostinho Jardim Gonçalves à ilharga - a segurar nos textos e com ar severo para verem que ele ainda é irmão do sr. BCP...
A prova do medo reside naqueles milhões, em fila pouco indiana, mostrando ao mundo que além do mistério da Vida - que a ciência já explica - há ainda um mistério superior, ainda por explicar... E é nesse vazio que o medo se multiplica, como rato em esgoto - atormentado-nos o passado do futuro...
<< Home