sexta-feira

O mito do sistema - por António Vitorino -

É muito arriscado escrever sobre um acto eleitoral antes de os eleitores irem às urnas. Ainda para mais sabendo que, quando o leitor vir estas linhas, já conhecerá o resultado da escolha em causa!, dn
Mesmo assim vale a pena falarmos das eleições britânicas que se desenrolam no momento em que escrevo (quinta-feira, 6 de Maio).
Durante a campanha, a previsão dos analistas apontava para que não houvesse no próximo Parlamento britânico uma maioria clara de nenhum dos partidos tradicionais de governo, dos trabalhistas ou dos conservadores. Na recta final, contudo, começou a esboçar-se a possibilidade de uma vitória destes últimos, tudo dependendo, contudo, da posição relativa do "terceiro partido" (os liberais-democratas) e, consequentemente, da concreta repartição de lugares provocada pelo sistema eleitoral uninominal a uma volta.
Diferentemente do que se passa na generalidade das democracias europeias continentais, nesta campanha britânica tudo leva a crer que os debates televisivos tiveram uma influência decisiva na determinação do voto. Para isso terá contado, desde logo, o "efeito novidade" da realização desse tipo de debates.
Com efeito, entre nós, pode parecer estranho que no democratíssimo Reino Unido se tenha chegado a 2010 sem que, numa campanha eleitoral, os líderes dos principais partidos nunca tenham sido submetidos à prova dos debates televisivos. Para quem gosta de sublinhar a atracção britânica pelo "modelo americano", esta singularidade não pode deixar de ser assinalada. Só que, desta feita, também os britânicos adoptaram o modelo confrontacional na televisão que fez escola nas democracias ocidentais desde o célebre debate entre Kennedy e Nixon em 1960.
Enquanto nos demais países europeus a continuada prática desses confrontos televisivos tem vindo a retirar-lhes peso na decisão dos eleitores, no caso britânico, aliada à novidade, verificou-se que a escassa diferença nas intenções de voto entre os três principais contendores acabou por valorizar o peso daqueles debates organizados pela BBC.
Mas o peso que aparentemente terão tido esses debates televisivos deve ser lido à luz do crescendo político dos liberais-democratas, que se podem considerar tradicionalmente os grandes prejudicados pelo sistema eleitoral uninominal a uma volta.
Ora, a confirmarem-se as sondagens que apresentam os três partidos separados entre si por escassos pontos percentuais, o impacto dos debates televisivos acresce a um certo sentimento de cansaço dos britânicos em relação ao seu sistema eleitoral pouco equitativo e moldado de forma a potenciar a bipolarização entre conservadores e trabalhistas e, assim, a proporcionar maiorias parlamentares monopartidárias.
Este modelo eleitoral beneficiou tradicionalmente os dois partidos de governo, que, por isso, nunca se mostraram disponíveis para atenderem às constantes reivindicações dos liberais-democratas no sentido de se introduzir maior equidade no sistema por via de uma componente que reforçasse a proporcionalidade.
Logo, o mais interessante desta eleição, para além naturalmente de saber quem ganha e assim será chamado a formar governo, será o de aferir até que ponto é que a imagem dos debates televisivos e os sinais de esgotamento do sistema eleitoral bipartidista constantes das sondagens acabará por ter tradução na opção de voto dos eleitores britânicos. Ou se, pelo contrário, o peso das máquinas partidárias dos dois tradicionais partidos de governo e a (incrivelmente demagógica) campanha da imprensa tablóide britânica contra a dispersão dos votos (e nesse ponto visando, como alvo preferencial, o crescimento dos liberais-democratas) acabarão por reconduzir os eleitores a uma escolha clássica e a um governo maioritário de um só partido.
Um parlamento sem uma maioria clara de um só partido, no curto prazo, exigiria muito provavelmente um governo de coligação (caso raro no Reino Unido), mas, mais profundamente, colocaria como inadiável a reforma do sistema eleitoral britânico. Iremos assistir ao fim do mito de que os sistemas eleitorais maioritários geram sempre governos maioritários?

Obs: Seria também interessante perceber que consequências políticas imediatas e de médio prazo estes resultados eleitorais - que conduzem a um governo de coligação (trabalhistas + liberais contra os conservadores, salvo melhor opinião) - provocam na reconstrução da Europa e na sua dinâmica por interacção com as economias dos Estados-membros.

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