quinta-feira

Obama, Prémio Nobel - por Mário Soares -

DN
Obama tem com ele a maioria dos americanos, os jovens, os mais pobres e as elites intelectuais, científicas e artísticas.
1. A notícia caiu como um raio e iluminou o mundo inteiro : Obama, prémio Nobel! Foi inesperada, alguns disseram-na prematura e provocou reacções, em todo o mundo, as mais diversas. É natural! Num mundo tão complexo e perigoso como é hoje o nosso, para mais em célere mudança, que mexe com tantos interesses contraditórios e agressivos, cujo rumo continua, obviamente, incerto e tão problemático, é compreensível que a notícia tenha provocado reacções muito diferenciadas e mesmo opostas que vão do rasgado aplauso, às reservas insidiosas ou categóricas de desagrado, até às dúvidas mais cautelosas quanto ao mérito e à oportunidade da decisão.
É aliás o que torna a escolha do júri do Nobel tão corajosa e oportuna: a controvérsia que está a provocar. Barack Obama é daquelas raríssimas personalidades que não deixa ninguém indiferente. Mexe com o futuro de todos nós. E é isso que o torna amado e odiado, não só na América como nos outros Continentes.
Por mim, que não o conheço pessoalmente, nem nunca sequer o vi ao natural - só o li, ouvi e vi na televisão -, fiquei radiante com a atribuição do Nobel da Paz e, por isso, felicitei de imediato o júri do mais consagrado de todos os prémios. Do meu ponto de vista não podia ter escolhido melhor e no momento mais certo. A polémica que suscitou é, claramente, a prova disso.
Em sentido contrário, argumentou-se que está há poucos meses na Presidência dos Estados Unidos e que ainda não teve tempo de ter feito nada de concreto. Nem nos Estados Unidos, nem no Iraque, nem no Afeganistão, nem em Guantánamo. Não fez nada? É extraordinário! Só fez isto: está a mudar radicalmente a América e o mundo. A América de Bush estava desacreditada, tendo infringido gravemente os Direitos Humanos, a principal bandeira do chamado Mundo Livre, durante a "guerra fria", mentido sem pudor acerca da existência de armas de destruição maciça, no Iraque. Marginalizou as Nações Unidas, provocou duas guerras cruentas: no Afeganistão e no Iraque, envolvendo a NATO na primeira, o que constituiu um erro fatal, para além de um crime. Fortaleceu o capitalismo especulativo de inspiração neoliberal, dito de casino, o que provocou a maior crise global financeira e económica de sempre.
Barack Obama acabou com o unilateralismo arrogante e agressivo dos Estados Unidos - que, dado o seu poderio militar, tinham acreditado ser os "donos do mundo" - e aceitou o multilateralismo, promovendo o diálogo com todos os países emergentes, estendeu a mão aos árabes (discurso do Cairo), acabando com as humilhações a que estavam sujeitos, criou uma nova relação com os países emergentes, respeitando-os como iguais, prometeu a retirada dos mísseis instalados na Europa de Leste, obviamente dirigidos contra a Rússia, desenvolveu o diálogo com a China, está a promover um novo relacionamento, entre iguais, com a América Latina (aceitou negociar com Cuba, sem condições prévias e dar passos concretos para vir a pôr fim ao bloqueio), condenou o golpe de Estado nas Honduras, um sinal importantíssimo de mudança, estendeu a mão a África, invocando a sua qualidade de afro-americano, advogou nas Nações Unidas a importância do diálogo, da paz e do respeito pela dignidade dos Povos, propondo um plano de desnuclearização progressiva, vai, na próxima reunião de Copenhaga, na Dinamarca, subscrever e relançar os mecanismos de Quioto - como já anunciou - para reduzir drasticamente as emissões de CO2 e iniciar uma política concertada de defesa do planeta, das ameaças de tanta gravidade para a sobrevivência das espécies e da espécie humana em particular, que sobre ele pesam.
Todos estes exemplos, entre tantos outros, são só palavras (promessas) e não valem nada? Quem o diz é porque não tem a noção exacta da importância das ideias e da defesa das boas causas para a mudança do mundo. Sempre assim foi.
Ora, a verdade é que ninguém tem uma varinha de condão, para melhorar o mundo, por mágicas ou por milagre. Obama, também não. Por outro lado, como democrata e como humanista, não faz imposições nem ameaças. Propõe, tenta persuadir, negoceia e vai lançando, com natural coerência, realismo e persistência, ideias e políticas de valores: a negociação contra a violência e os conflitos; acordos para a paz negociada de forma a terminar as guerras abertas ou latentes; a ideia de que o mundo é global e um só - sujeito a tantos e tão graves desafios - que temos de nos entender, todos, para sobrevivermos; a defesa do planeta; o respeito pelos Direitos Humanos e pela igualdade jurídica entre os Estados, grandes, médios e pequenos; a igualdade entre mulheres e homens, entre as diferentes etnias, condições sociais e dos naturais ou imigrantes…
Obama não está sozinho. Tem com ele a maioria dos americanos, os jovens, os mais pobres e as elites intelectuais, científicas e artísticas. E tem com ele o mundo que pensa, que está informado e que tem bom senso. Tem contra os grandes interesses, os egoísmos ferozes e todos os que são inconscientes, formados pela cultura da violência ou pela sistemática má informação.
Contudo, a sua máxima força resulta da esperança que suscita num mundo melhor, mais justo e solidário. Não se trata de mais uma utopia. Trata-se de dar um grande passo em frente, como tantos outros que houve no passado e que conhecemos ao longo da História.
O júri de Oslo teve, a meu ver, a grande lucidez e coragem - que se insere, aliás, na linha da sua tradição e ficará na história - ao atribuir a Barack Obama o Prémio Nobel da Paz, como explicou: "Pelos seus esforços extraordinários em favor do reforço da diplomacia internacional e da cooperação entre os Povos." Foi um prémio que teve o recorde dos votos favoráveis (205). E, acrescentou: "Poucas pessoas houve que tenham sabido atrair a atenção do mundo, como Obama, e dar aos povos esperança num melhor futuro. A sua diplomacia baseia-se na ideia de que aqueles que dirigem o mundo devem-nos fazer partilhar os valores da maioria dos povos do mundo."
Bravo, Oslo! Queríamos que Obama fizesse mais: no Afeganistão, no Iraque, no Irão, em Cuba? Lembrem-se de que Obama não impõe: negoceia. E como dizem os italianos: "Roma e Pavia não se fizeram num dia…"
2. O INA (Instituto Nacional de Administração), uma criação do 25 de Abril, celebrou trinta anos de existência e dez anos em que lançou a ideia feliz de, cada ano, haver o nome de uma figura histórica como patrono. O primeiro foi o próprio marquês de Pombal, figura polémica mas incontornável, tanto mais que a sede do INA está no belo Palácio do Marquês, em Oeiras. E depois houve outros - não me lembro de todos - como: D. Henrique, o Navegador, Damião de Góis, Mouzinho da Silveira e, no ano findo, António Sérgio. Este ano a escolha recaiu em Jaime Cortesão e o presidente do Conselho Científico do Instituto, por sugestão anterior do professor Correia de Campos, convidou-me para falar do patrono.
Aceitei com a consciência perfeita de que dos alunos que se inscreveram no curso deste ano pouquíssimos teriam ouvido alguma vez falar em Jaime Cortesão.
Ora Jaime Cortesão foi um dos intelectuais mais relevantes do século XX: poeta, dramaturgo, memorialista, escritor, historiador, homem político impoluto e grande resistente à Ditadura, que oprimiu o País, para nossa desgraça, 48 longos anos. Nasceu em 1884 em Ançã, Cantanhede, e morreu em Lisboa em 1960. Tirou o curso de Medicina, foi médico e professor da Faculdade e, proclamada a República, foi deputado e voluntário na guerra de 14-18. Gaseado e ferido gravemente na Flandres, foi-lhe outorgada a Grã-Cruz de Guerra por feitos heróicos em combate.
Regressado a Portugal, foi nomeado director da Biblioteca Nacional, onde formou o célebre Grupo da Biblioteca, com Raul Proença, Aquilino Ribeiro e outros intelectuais de grande influência. Donde nasceria a Revista Seara Nova, seguramente a mais influente revista intelectual e cívica do século passado.
Participou na primeira revolta contra a Ditadura, de Fevereiro de 1927 e, teve em seguida que se exilar sucessivamente para a Bélgica, França e Inglaterra, onde começou a promover o seu monumental trabalho de investigação histórica. Em 1931, com o advento da II República espanhola, fixou-se em Espanha. Foi amigo de Manuel Azaña, grande político, presidente da República e também ele um ilustre intelectual e escritor e criou o chamado "grupo dos budas" de permanente conspiração contra a ditadura salazarista.
No final da guerra de Espanha, que constituiu uma tragédia para a Europa - e para o mundo -, ganha pelos nazis e pelos fascistas italianos e portugueses, contra as democracias, conseguiu atravessar a pé os Pirenéus e voltar ao exílio em França. Mas por pouco tempo. Em 1940, com a guerra mundial, acompanhado pelo ex-presidente Bernardino Machado, regressou a Portugal, onde ficou preso em Peniche. Por pouco tempo, de resto, e foi expatriado para o Brasil.
Foi então que realizou o principal da sua obra histórica e, ao mesmo tempo, impondo-se às elites brasileiras, foi nomeado professor da Escola para Diplomatas do Itamaraty, uma das melhores do mundo.
Regressou então a Portugal nos inícios de 1950. Tornou-se logo a maior referência da Oposição portuguesa. Foi nessa altura que o conheci e que me tornei seu modesto e fiel discípulo e admirador. Durante dois anos reunimo-nos, na sua residência, à Estrela, para elaborar o Programa para a Democratização da República. Morreu em 1960 depois de ter sido presidente da Associação de Escritores, aliás extinta, pouco depois, pela Ditadura. Era um homem de uma cordialidade e generosidade extremas e com um sentido agudo da amizade e da solidariedade. Ficou para mim sempre como um Mestre e uma referência moral, política e intelectual.
Compreendem por isso a honra que tive em falar aos jovens alunos do INA desta enorme personalidade moral, política e intelectual, poder transmitir-lhes a admiração que sempre me mereceu e incitá-los à leitura da sua vasta obra.
Obs: É interessante reconhecer em Mário Soares a boa escrita, um hábil e consistente defensor de Barak Obama - que deveria passar por Portugal para lhe agradecer o gesto e conhecer o país e, de caminho, recuperar um nome cimeiro das Letras do séc. XX: Jaime Cortesão. Mário Soares está de parabéns, e como ameaça nunca envelhecer desafia a lei do tempo com imensa lucidez.