sexta-feira

Questão de hábito - por António Vitorino -

o sublinhado é nosso.
A sustentabilidade da retoma vai depender dos efeitos económicos das medidas de estímulo fiscal adoptadas, in dn Num romance que li há já alguns anos, um personagem fatalista, perante um infortúnio, dizia, em tom resignado: "Isto de ter más notícias é tudo uma questão de hábito."
Nestes últimos meses, este personagem tem-me vindo à memória quase diariamente! E só não reli o livro porque, nas sucessivas mudanças de casa, se deve ter extraviado.
No fundo, o dito personagem apelava à sua própria resignação, convencido que estava de que pouco adiantaria contrariar o curso dos acontecimentos nefastos que marcavam a sua vida.
No debate político actual também se fazem notar alguns especialistas da resignação. Há os que o assumem abertamente e os que o fazem de forma mais encapotada, mas todos eles tentam encontrar bodes expiatórios para a crise em que vivemos: os mercados desregulados, os reguladores relapsos, os banqueiros fraudulentos, os políticos laxistas, os ideólogos do minimalismo do Estado. Em qualquer caso, tentam levar a débito dos governos em funções os nefastos impactos da recessão e do aumento do desemprego.
Para os afiliados da resignação os sinais que surgem de que a crise entrou num ciclo de abrandamento destoam do hábito das más notícias que justifica o seu discurso e alimenta as suas estratégias políticas.
É verdade que esses sinais são ainda ténues, mas negar a sua existência constitui pura estultícia. Há algumas semanas que as bolsas registam subidas continuadas, os indicadores avançados de confiança de consumidores e investidores apontam para uma expectativa de melhoria da situação económica a um prazo à vista das suas intenções económicas, a descida das taxas de juro de referência do Banco Central Europeu começa a sentir-se nas taxas de juro praticadas nos empréstimos novos (mesmo que ainda muito contrabalançadas pelo aumento dos spreads), a fluidez dos empréstimos interbancários vai crescendo progressivamente, pelo segundo mês consecutivo o mercado imobiliário nos EUA apresentou resultados encorajadores.
Apesar de as previsões económicas das organizações internacionais continuarem a ser muito negativas, quer o presidente do Banco Central Europeu quer o director do FMI vieram, pela primeira vez, proferir afirmações que colocam no curto prazo a inversão da tendência declinante das economias. Alguns, mais optimistas, atravessam-se mesmo com a previsão de que a partir do terceiro trimestre deste ano o pior da crise terá ficado definitivamente para trás.
Escaldados com a catadupa acelerada de acontecimentos negativos que se sucederam após a falência do banco Lehman Brothers, em Outubro passado, os economistas redobram precauções, receando que a conjugação destes sinais seja "sol de pouca dura" e pretendem, assim, evitar serem de novo colocados na posição incómoda de, na sua esmagadora maioria, terem subestimado, no final do ano passado, a extensão da crise económica que aí vinha.
Mas, se estes sinais que ora se vislumbram tiverem de facto consistência e forem sustentáveis nas próximas semanas, então bem se pode dizer que está em curso a primeira fase da saída da crise, a da estabilização do sistema bancário e financeiro global.
Convém, contudo, não esquecer que esta é uma crise de confiança, a qual, tendo tido origem no sistema financeiro, muito rapidamente contagiou a economia real e gerou uma onda de desemprego portadora de dramas humanos e de acrescidas tensões sociais. Logo, se os sinais que vêm do sistema financeiro são uma condição necessária, eles não são, contudo, condição suficiente para ultrapassar a crise. Por isso, a sustentabilidade deste percurso em direcção à retoma vai depender dos efeitos económicos das medidas de estímulo fiscal que foram adoptadas pelos governos no início deste ano.
É que, sem a retoma do investimento privado e sem a inversão da dinâmica predadora do emprego, os maus hábitos voltarão de novo e com eles a resignação fatalista ainda que disfarçada de indignação moralista. A que também poderíamos dar o nome de populismo!
Obs: Infelizmente, António Vitorino tem razão, e à necessidade dos mensageiros da desgraça se perfilarem já na pool position das eleições, as três deste ano mais a outra que se segue para depois e que assume um cariz unipessoal, são, consoante o perfil, interesse e posicionamento de cada actor neste teatro da vida, acentuar o psicodrama da crise ou de ver nela (já) alguns sinais encorajadores de mudança, ainda que ténues. Ora aqui está uma reflexão interessante para ler nos "pastelinhos de nata", tendo a torre de Belém como pano de fundo e os mármores do CCB a ofuscarem-nos a vista do horizonte da bela linha de Estoril.