domingo

Visto, está conforme - por Nuno Brederote dos Santos - no DN

Por muito distraído que eu andasse, era impossível deixar de reparar na sucessão, em quarenta e oito horas, do discurso de Cavaco Silva na abertura do 4.º Congresso da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) e mais uma entrevista de Luís Filipe Menezes à SIC Notícias. Não para sugerir um nexo entre os dois factos, mas porque ambos formalizam, segundo os meus subjectivíssimos critérios, o arranque da pré-campanha das próximas eleições europeias. Não está mal: quer porque o último cabeça de lista (o do PSD) foi finalmente revelado, quer porque eu tenho sempre a original atitude de gostar muito das campanhas até ao limite fisiológico de me fartar delas.
Vai ser curioso assistir às ondas de choque provocadas pelo discurso de Cavaco. Como sei que a notícia está no excesso, não me fiquei pelas manchetes e fui fazer uma primeira leitura do texto ao sítio da Presidência da República na "net". Como é de regra, pouco importa a substância do que lá está (o que é bem diferente de dizer que a não tem). É um conjunto de ideias sobre a crise, económica e financeira, mundial; com imputações genéricas de culpas, mais duras (e mais moralistas) para empresários e gestores e algo mais políticas para com os decisores dos países que nos são deixados facilmente adivinhar. Segue-se um "vademecum" para ambos esses grupos. Passando depois a Portugal, são equacionados "desafios" que se apresentam à nossa economia e instam-se políticos, empresários e gestores a novas atitudes e condutas, que implicam (ou sugerem) críticas à sua actuação anterior e (ou) actual. Tudo isto vem envolto numa abordagem que, sendo ideológica, é no entanto a que maior receptividade deveria obter junto dos presentes (sendo o exemplo mais berrante a alusão às políticas "que favorecem o enfraquecimento dos laços familiares"). Chamemos-lhe social-cristã. Pela televisão pudemos ver que o tom é firme, mas quem quiser chame-lhe duro. De resto, várias vezes aqui assinalei que é característico do nosso Presidente manietar-se antes de falar forte e grosso: é que depois, quando vierem reivindicar consequências, ele pode dizer com verdade que está manietado.
Só os ainda mais distraídos do que eu é que não terão notado como, poucos dias antes, muitos "media" assinalavam a habitual não notícia: "a partir de hoje, o Presidente da República já não pode dissolver o Parlamento". Notícia é saber-se a animação que isso sempre desencadeia para os tempos seguintes.
Mas a substância, escolhida como é para ser pacífica, importa menos do que o facto de estes discursos se sucederem quase iguais, convidando assim à busca minuciosa das pequenas diferenças. São estas que, dramatizadas ou banalizadas, suscitarão todas as atenções, moldarão as atitudes e irão até impregnar (odiosa palavra, esta) o discurso oficial dos vários agentes, políticos, económicos e sociais. Mas sobretudo - e para nossa desdita - darão azo a torrenciais manifestações de inteligência em filigrana, por parte dos treinadores de sofá que se (nos) pretendem(os) fazedores de opinião. Duríssima será também a habitual competição entre os que se insinuam como intérpretes autênticos, para já não dizer fantasmáticos autores da prosa em causa. A vida ensina, a gente aprende: vamos ser bombardeados com tempos verbais, escolhas entre sinónimos possíveis, substantivos mais usados por um partido do que por outro. E com os "não é por acaso" de uma fé intangível, que não poderemos combater. A generalidade ou a abstracção de uma frase será o volúvel corcel de quem quiser montá-la. O governo explicará que não é com ele e, perante um caso ou outro mais difícil, dirá que a crítica é para quem empata a governação. As oposições proclamarão exactamente o contrário: que tudo é contra o governo. Mas terão de travar entre si alguns duelos, abrangendo na crítica os demais: é a mim que ele dá razão. Todos parecerão acreditar no princípio segundo o qual o melhor argumento é o mais ruidoso, pelo que a gritaria que se segue terá a vantagem cultural de nos mandar a todos para o cinema.
Menezes, um estudioso das agendas alheias, esperou e bem. Depois chegou e poisou no galho alto. Descontado um pequeno ajuste de contas, detalhado nome a nome, foi gentil. Voltou a protestar lealdade e a declarar-se pronto para a primeira linha do combate partidário. O pior vem a seguir e é sempre mais rápido do que se julga. É quando ele desce: primeiro ao galho baixo, depois ao chão. Se o aproveitarem, dá sarilho. Se o ignorarem, também. Vimos este filme mais vezes do que A Túnica. Boa noite e boa sorte.
Obs: Nuno Brederote dos Santos tem razão. Mas o mais curioso é que a forma e a substância do assertivo discurso de Cavaco poderia ser a autobiografia do próprio "cavaquismo" (que ruíu com o caso da Ponte 25 de Abril e o caso dos hemofílicos que crucificou Leonor Beleza, a então ministra da Saúde que Cavaco adorava), em que a promiscuidade entre altos gestores e empresas (públicas e algumas privadas) e o então Executivo do PSD como que patrocinava esses interesses cruzados que comprometiam a transparência das regras públicas no funcionamento da complexa máquina política do Estado e da própria economia.
Mas, na altura, o PSD funcionava assim, viciado e rotinado numa década de poder: só se arranjava emprego com cartão do partido, e os concursos públicos das grandes obras também eram adjudicados com base numa teia de cumplicidades entre o alto aparelhismo do partido da Lapa e o empresariado (público e privado) amigo da causa (que alimentava).
E neste o "esquema" era simples: as empresas que conseguissem boas adjudicações no ministério de Valente de Oliveira (e conexos) acabariam por contribuir para os "cofres" do PSD; aquelas que não conseguissem passavam-se para a oposição, as usual.
As coisas não mudam, assim como a natureza humana.
Naturalmente, este cruzamento de interesses pode existir no governo PSD ou no PS, há que estar atento e denunciá-los para evitar distorções no mercado ou gerar situações de favor e corrupção que têm enormes custos sociais.
Portanto, diria que Cavaco tem uma "dupla" razão:
  • 1. O seu discurso é uma autobiografia do próprio cavaquismo, agora em versão de autópsia e volvidos cerca de 15 anos após deixar o Executivo. Mas mais vale tarde do que nunca para fazer estes diagnósticos ao estilo de médico (quase) reformado, beneficiando de algum distanciamento histórico, o que só confere objectividade, rigor e isenção;
  • 2. Alertar o Governo em funções para que situações dessa natureza sejam combatidas ou, de preferência, evitadas. Pois quem paga essa alegada promiscuidade e/ou corrupção são os contribuintes.

Cavaco mais do que ser o alter-ego do BE, do PCP e da oposição em geral (de cujos votos precisa para ser reeleito e fazer um 2ºmandato), opera como a sua "outra identidade" - reflexo do próprio autor do discurso do PR - que já está em campanha e também está naturalmente preocupado com as condições de viabilidade económica e de sustentabilidade dos portugueses.

Por estas duas razões gostei do discurso do Sr. PR.