A crise na América e na Europa - por Mário Soares -
A CRISE NA AMÉRICA E NA EUROPA, in DN
Mário Soares
1 . A imprensa europeia não deu suficiente destaque às palavras proferidas, a 8 de Janeiro, em Washington, por Barack Obama, quando referiu o novo plano da reactivação, que tenciona submeter ao Congresso para vencer a crise. E, no entanto, trata-se de uma reflexão pertinente, que importa ponderar, quando na Europa a crise se agrava todos os dias - e está a minar a confiança dos europeus no seu futuro mais próximo - no ano em curso e, porventura, nos que se lhe seguirão. Porquê? Porque os Governos da União não conseguiram entender-se entre si quanto a uma estratégia conjunta - e concertada - para vencer a crise, que começa por diagnosticar as suas causas, com objectividade e, a partir daí, indicar as políticas necessárias para, concertadamente, a poder combater com eficácia.
Que disse então Barack Obama? Primeiro, "que neste momento só o Governo tem capacidade para providenciar o estímulo necessário para levantar a economia de uma recessão severa e profunda". O que significa, para o Presidente eleito, que a crise, começando por ser financeira se tornou também económica - os Estados Unidos estão em recessão, como aliás a União Europeia - e daí resultou uma crise profunda e sistémica, que só poderá resolver-se mudando o paradigma, que se revelou em absoluto errado: a teoria neoliberal (em que vivíamos) de deixar funcionar o mercado livremente, com a sua "mão invisível" (Friedman), com cada vez menos Estado porque o mercado se auto-regulava.
A crise em que nos encontramos provou que não era assim. Precisamos agora da intervenção dos Estados, como de pão para a boca. Nacionalizações, claro, as que forem necessárias... E privatizações, como é óbvio, quanto menos possível. A fase do capitalismo de casino - ou financeiro-especulativo - tem de acabar. De facto e nas mentalidades. E o que terá de se seguir é uma regularização estrita do mercado - ditada pelos Estados nacionais - e a regularização da globalização feita por instituições internacionais, comandadas não por Washington ou por Bruxelas, mas sim pelas Nações Unidas. "Bretton Woods, exit..."
Antes desta intervenção, Barack Obama teve o bom senso e a grande habilidade política de almoçar, na Casa Branca, antes de lá estar por direito próprio, com o Presidente cessante e com os três ex-presidentes vivos: Jimmy Carter, Bush, pai, e Clinton. Deu a imagem, assim, de ter estabelecido um certo consenso sobre a necessi- dade de falar e propor soluções antes de ser Presidente em exercício. De facto, o tempo urge e quanto mais cedo a América - e o mundo - tiverem a visão clara do rumo que a nova Administração vai seguir, tanto melhor, para as populações americanas como para as do resto do mundo. Tanto mais que a recessão nos Estados Unidos destruiu 2,6 milhões de empregos, estando a taxa do desemprego em 7,2%, a maior desde Janeiro de 1993. Para não falar do deficit externo, preocupação que agora passou a segundo plano...
Em que consiste o plano que irá ser submetido à aprovação do Congresso, logo após a posse de Obama? Disse o Presidente eleito: "No investimento público de cerca de mil milhões de dólares em infra-estruturas, energia e tecnologia, no investimento extraordinário de assistência médica, educação, assistência social, policiamento e protecção social (com transferência de capitais para os Estados mais descapitalizados) e cortes fiscais, apenas, para as pequenas e médias empresas." Sublinhou ainda: "Precisamos de pôr dinheiro nos bolsos dos americanos, de criar novos empregos, de recuperar o mercado de crédito e restaurar as regras do seu funcionamento, para nos certificarmos de que uma crise, como esta, não volte a acontecer." E ainda: "Criar mais de três milhões de postos de trabalho, maioritariamente do sector privado. Duplicação das fontes alternativas de energia, o equipamento de milhares de escolas e laboratórios, a construção ou reparação de estradas, pontes e infra-estruturas públicas. (1)".
Assim, evidencia-se em Obama uma preocupação prioritária em atacar as causas que provocaram a crise. E, depois, de mudar radicalmente as políticas financeiras e económicas, com uma intensa preocupação social e ambiental e de valer aos mais pobres, aos desempregados - criando novos empregos - aos imigrantes e às pequenas e médias empresas, com o mesmo objectivo do emprego, às universidades, aos centros científicos, aos jovens, por forma a estimular a inovação, o saber e a criar um novo dinamismo social e ambiental, com consequências evidentes.
Ora são esses objectivos e a preocupação de mudar as regras da sociedade, para não deixar que uma nova crise, de dimensão semelhante, possa surgir, o que não parece ser a orientação, até agora, proposta pela União Europeia.
Tomar medidas para que os bancos saudáveis não entrem em falência e possam, eventualmente, provocar uma "corrida" geral aos bancos - o que poderia pôr em causa o sistema financeiro no seu conjunto - é uma coisa compreensível, desde que haja transparência total no processo de ajuda e na responsabilização penal dos culpados, quando os houver. Outra, completamente diferente, é investir nos bancos, indiferenciadamente, para que fique tudo na mesma, passada a tormenta, e ignorar ou salvar os culpados. Isso é inaceitável e - atenção! - pode vir a provocar, com grande probabilidade, focos de mal-estar social e de revolta... Sem esquecer a desconfiança e o descrédito, que nesse caso, persistiriam, impedindo que se criasse - como é necessário - um novo dinamismo e uma nova credibilidade.
Espero que os Governos europeus possam vir a compreender isso e a agir em conformidade! (1) Citações retiradas da reportagem de Rita Siza, Público, 9 de Janeiro 2009.
2 . A guerra entre Israel e a Palestina tem vindo a agravar-se de modo intolerável. Sabemos que as responsabilidades vêm de longe e são repartidas. Mas há uma desproporção de meios e de custos que está a transformar esta guerra inútil numa verdadeira catástrofe humanitária e, como se escreve e grita, um pouco por toda a parte, num holocausto, de sentido contrário. Para além de ser uma nova sementeira de ódios e, da parte de Israel, um erro colossal, tanto mais que repete um outro erro irreparável, que persiste na memória de todos: o ataque ao Líbano e ao Hez-bollah, em 2005, com o mesmo pretexto do "terrorismo". Mas quem tem as mãos limpas, em matéria de terrorismo, na região?
Penso que Israel, recorrendo à força bruta, para esmagar em vez de convencer, imitando Bush, está a desbaratar o capital de simpatia e de credibilidade que tinha no mundo, fazendo, ao mesmo tempo, o jogo do extremismo islâmico e tornando impossível a situação dos "moderados", como Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana.
Israel escolheu um caminho muito perigoso que pode pôr em causa a sua sobrevivência, num momento de mudança tão agudo e difícil como aquele em que o mundo se encontra. Quis forçar a mão ao Presidente Obama, no momento em que ainda não tomou posse, confiado no poder de persuasão do poderoso lobby judaico-americano? Fez mal. Recusando a proposta de cessar- -fogo das Nações Unidas e as pressões diplomáticas, que vão no mesmo sentido, do Presidente Moubarak, apoiado por Sarko- zy e pelo "moderado" Mahmoud Abbas, Israel perdeu uma excelente oportunidade de sair de um conflito que não lhe pode ser favorável, como a infeliz experiência que teve no Líbano demonstra.
Pelo contrário, anunciando, com a arrogância que lhe dá o seu poderio militar uma "nova escalada da guerra", persiste numa via sem saída nem sentido, que representa uma fuga para a frente, que só lhe pode trazer novas e pesadas dificuldades.
A Faixa de Gaza está numa situação terrível, no plano humanitário. Os palestinianos não têm medicamentos, água, electricidade, legumes. O seu território está a ser brutalmente devastado. Parece incrível como Israel, um povo que sofreu o holocausto nazi, não tenha sensibilidade para uma tal situação?! Sabe-se agora, pelo New York Times, que Israel solicitou, há tempo, ao Presidente Bush apoio para destruir as instalações nucleares do Irão. Completa loucura estratégica! Bush, felizmente, já não estava nessa. Recusou. Conduziria necessariamente a uma guerra de grande dimensão, na região - que a União Europeia não poderia acompanhar -, que enfraqueceria, definitivamente, o papel do Ocidente e dos Estados ditos moderados do Próximo Oriente. Uma tragédia para Israel!
Em termos políticos, estratégicos e diplomáticos Israel tem de deixar de se pensar como "o Povo Eleito". Em termos religiosos, é outra coisa: cada religião tem a sua verdade e presta-lhe culto, como deseja, devendo, por isso, ser respeitada. Mas a política internacional é diferente. A paz implica diálogo, "também inter-religioso", negociações e compromissos. Não se compadece com guerras como as do Afeganistão e do Iraque, que visam a eliminação física dos inimigos e a imposição da lei, dos vencedores, usando tão-só a força.
Os tempos, nesse aspecto, estão em mudança, como as relações de força. Israel devia saber isso. Não pode, assim, pedir aos seus aliados e amigos que a apoiem incondicionalmente. Sobretudo tem vindo a cometer erros colossais e, porventura, mesmo crimes contra a Humanidade."
Obs: Digamos que o dr. Mário Soares aproveita bem o seu tempo, e através dele dá um lúcido e realista empurrão à definição da política económica do Governo socialista em funções, colhendo inspiração em Obama. Faz o pleno.
Pergunte-se ao poeta Manuel Alegre, uns bons anos mais novo que Mário Soares, se também conseguiria reflectir com tanta lucidez e sustentabilidade politológica...
A resposta é dada se lermos um e outro. Felicite-se o dr. Mário Soares pelos seus escritos, arrisca-se a ficar na história (também) como um brilhante articulista, que vai construindo pensamento e doutrina. Tudo a caminho dos 90s, é obra.
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