segunda-feira

O choque irlandês - por Francisco Sarsfield Cabral -

O choque irlandês, in Público
Lamento que o referendo irlandês tenha inviabilizado o Tratado de Lisboa. Para além de se chamar “de Lisboa” e de ter sido concluído numa presidência portuguesa, o Tratado vinha pôr fim a mais de uma década de impasse institucional na UE, face ao alargamento.
Na quarta-feira Teresa de Sousa escreveu aqui: “os referendos a tratados europeus não são actos de transparência democrática: são a hora de todas as chantagens”. É verdade. E duvido de que, desta vez, seja politicamente aceitável, na Irlanda, repetir referendos europeus até sair a resposta “correcta”. Seria ir longe demais na falta de respeito pela vontade democrática dos irlandeses. Aliás, a França e a Holanda, que há três anos chumbaram em referendo a impropriamente chamada constituição europeia, recusaram-se a repetir a consulta popular.
Mas o problema é mais sério do que debater o recurso a referendos. A questão de fundo é outra e tem a ver com o crescente alheamento ou até hostilidade das opiniões públicas perante a integração europeia. Tendência de que o “não” irlandês é mais uma manifestação.
Os dirigentes políticos têm ignorado, ou fingido ignorar, este divórcio entre os cidadãos e o projecto europeu. Apesar de em Bruxelas ser tomada boa parte das medidas que influenciam a nossa vida, os governantes raras vezes falam de temas europeus, a não ser para se desculparem de alguma política incómoda. E, que eu saiba, na recente disputa pela liderança do PSD não foi sequer abordada a integração europeia.
A Europa apenas se debateu entre nós quando o PP e Paulo Portas eram euro-cépticos e contra a moeda única. Hoje, contra o projecto europeu restam os argumentos bafientos do Partido Comunista (que sempre se opôs à UE, considerada uma instituição capitalista, onde predomina o neo-liberalismo) e de alguma extrema-esquerda. Mas não é preciso ser contra a integração europeia para a discutir.
Os líderes políticos não se deram conta de que a integração europeia, hoje, já não pode avançar com “passos furtivos”, à margem das opiniões públicas. A resposta que deram ao chumbo da infausta “constituição” foi um modelo de cinismo anti-democrático, tentando iludir os cidadãos. Ora, decidir à margem dos cidadãos, enganando-os, é o que não se deve fazer numa União da qual as pessoas se têm vindo a afastar.
Aproveitaram-se mais de 90% da rejeitada “constituição” e embrulhou-se o texto noutras roupagens formais, para apresentar o Tratado de Lisboa como algo radicalmente diferente. Por isso, oficialmente só se publicaram emendas e revisões de artigos de tratados existentes, tornando incompreensíveis as mudanças. Giscard d’Estaing não podia ter sido mais explícito: “A opinião pública será levada a adoptar, sem as conhecer, as propostas que não nos atrevemos a apresentar-lhe directamente”.
Depois, como um referendo na Grã-Bretanha daria de certeza um “não”, liquidando o Tratado de Lisboa, para ajudar Gordon Brown a não referendar evitaram-se outros referendos, como o nosso, violando promessas eleitorais. Afinal, serviu de pouco a “habilidade”.
Agora a reforma institucional da União Europeia voltou à estaca zero. E, numa UE alargada, os consensos são naturalmente cada vez mais difíceis.
Mas mais importante do que superar a crise institucional será os dirigentes europeus mudarem de atitude no seu relacionamento com as opiniões públicas nacionais. O que implica passarem a preocupar-se com o que os cidadãos pensam da integração europeia.
Isto não deve levar, como tantas vezes tem acontecido, a novos esforços de propaganda dirigidos por Bruxelas. Deve, sim, estimular os políticos de cada país a liderarem o debate público em questões europeias, em vez de se manterem alheios e calados, deixando o campo livre aos euro-cépticos.
Uma das virtudes do projecto europeu é ser aberto, no sentido de não apontar para qualquer meta ou modelo pré-determinados. O caminho faz-se caminhando – mas por que se há-de caminhar de olhos fechados?
Reconquistar as opiniões públicas para o projecto europeu é o maior desafio actual da UE. Ainda que isso conduza a uma maior lentidão no avanço da integração, tem de se aproximar a Europa comunitária das pessoas. Digo-o como europeísta, pois construir a Europa nas costas dos cidadãos é uma receita para o desastre. Talvez o choque irlandês sirva para acordar alguns.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: O Francisco entende, e bem, que o maior desafio nas actuais circunstâncias da UE é (re)conquistar as opiniões públicas europeias, ou seja, o mesmo é perguntar o que as elites europeias têm feito - incluindo nelas, desde logo, o Presidente da Comissão Europeia, os Eurodeputados e demais altos funcionários da burocracia bruxelense - para estreitar a relação da Europa alta (da decisão política e dos corredores de tapete vermelho) da Europa baixa - constituída pelos povos da Europa que estão cada vez mais alheados dos mecanismos, processos e do ideário europeu.
A resposta é tanto mais complexa se se considerar que o seu máximo representante, Durão Barroso, pouco ou nada tem feito para incrementar esse aprofundamento e estreitamento democrático entre as duas europas: a alta e a baixa, a que manda e a que obedece, a que recebe bons salários e a que paga o funcionamento do "monstro eurocrático" bruxelense.
O que fez Durão na crise gerada pela alta do preço do petróleo - que compromete o fornecimento de energia a toda a Europa? Criou ele algum grupo de trabalho especial que articulasse posições ao nível europeu para fazer face à gula dos homens da OPEP e aos especuladores no mercado internacional - a fim de conter a especulação do petróelo? Nada, zero.
O povo olha para estes eurocratas e a única coisa de que se recorda é o mesmo Durão andar a acartar com uma saca de farinha no Darfur sob o olhar atento das resportagens da CNN. Nesse dia a imagem de Durão circulou no mundo como um amigo dos pobres de África. Mas a coisa não passa disso mesmo: uma imagem.
Se a SIC, a TVI ou a RTP forem alí para o Chiado e perguntarem aos portugueses que medidas distinguiram Durão Barroso no cargo que actualmente ocupa na Europa, muito provavelmente a resposta aponta para o facto de Durão estar a ganhar mais, ter mais visibilidade internacional e de ter feito uns discursos vazios sobre a globalização. Ah, e viaja muito...
E alguns desses possíveis respondentes, mais lúcidamente, até seriam capazes de reformular: foi Durão que fez algo pela Europa, ou é a Europa - [pobre Europa] - que tem feito muito pela vidinha do Barroso!!!??
Atrevo-me a perguntar: será que a relação que Du$ão tem com a Europa é convergente com a que Scola$i e Madail têm com o futebol nacional?!