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António Vitorino e o Tratado de Lisboa: Eficácia e Democracia. Recuperar uma troika de reflexões sobre a Europa

Uma troika de reflexões sobre a Europa - por António Vitorino - recentemente publicadas no DN. Falta alinhar a última, que está em gestação. O tema é oportuno e exige meditação porquanto se coloca, para breve, o momento da ratificação ao Tratado de Lisboa (nos vários Estados membros da UE), assinado em Belém, donde outrora, em 1500, zarparam as caravelas em direcção ao desconhecido, assumindo riscos incalculáveis, indo sem ter a certeza do regresso, e sempre à bolina. Ou como diria o poeta Miguel Torga: a aventura é sempre uma partida, nunca uma chegada. Estamos, pois, em movimento...
OS TRÊS RISCOS
António Vitorino jurista
Não surpreenderá o leitor que este artigo verse o Tratado de Lisboa. O acordo alcançado em Lisboa na semana passada põe fim a um ciclo de intenso debate institucional na União Europeia na própria noite em que se fechou o Tratado de Nice, em Dezembro de 2000.
Há que saudar o sucesso da presidência portuguesa, tanto dos seus responsáveis políticos como dos diplomatas envolvidos. Foi o triunfo do método e da perseverança, não isenta de arrojo. Ainda me lembro do cepticismo com que os "meios europeus" de Bruxelas receberam as palavras do primeiro-ministro José Sócrates na noite do Conselho de Junho que aprovou o mandato quando anunciou que a intenção era ter o acordo final já no Conselho informal de Outubro.
Pois bem, ele aí está, o acordo que culmina a mais curta Conferência Intergovernamental da história da União. É verdade que tal se fica a dever porque se trabalhou com base no Tratado Constitucional e num mandato detalhado aprovado durante a presidência alemã. Mas só quem não está familiarizado com estas coisas europeias é que pode ignorar que a recta final é sempre a mais difícil porque é aí que cada país avalia o equilíbrio global do acordo e... se não estiver contente pode criar reais dificuldades!
Desta feita as coisas também se passaram assim. E o Tratado de Lisboa honra o perfil das três sucessivas presidências portuguesas da União.
Há contudo que não subestimar três riscos com que nos iremos confrontar no período de ratificação que se iniciará após a assinatura do Tratado previsto para 13 de Dezembro em Lisboa.
O primeiro risco é que a controvérsia sobre a forma de aprovação do Tratado acabe por diluir o conteúdo e as inovações do próprio Tratado. Decidir da forma de aprovação é sem dúvida uma questão importante. Mas parece-me avisado que Portugal postergue essa decisão para um momento posterior à assinatura do Tratado. A visibilidade que lhe advém de exercer a presidência acabaria por fazer da decisão portuguesa (que se quer livre e apenas em função dos nossos interesses como Estado) uma peça relevante do debate sobre a forma de aprovação noutros países. Evitar essa instrumentalização significa reforçar a nossa capacidade própria de decisão. E adoptá-la sem tibieza, assumindo todas as suas implicações na vida política interna.
O segundo risco tem a ver com a ilegibilidade do novo Tratado. Com efeito, o Tratado Constitucional teria decerto muitos defeitos, mas ao assentar numa preocupação de codificação dos tratados existentes fazendo-os convergir para um texto único, o defunto Tratado Constitucional era susceptível de uma leitura mais fácil e corrida. Ora a decisão tomada no mandato de Junho de abandonar a vocação constitucional do Tratado, mantendo a existência de dois tratados (o Tratado da União e o Tratado sobre o Funcionamento da União), com remissões recíprocas, e adoptando a técnica legislativa de emendas pontuais aos Tratados vigentes, tudo resulta numa dificuldade acrescida de leitura (e de compreensão) pelos não especialistas. O retorno à técnica clássica de redacção dos Tratados vai exigir um esforço de informação e de comunicação acrescido, desde logo pela publicação de um texto suficientemente claro e preciso sobre as inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa. E isto independentemente da forma de ratificação que venha a ser escolhida entre nós.
Este esforço de informação faz parte também da resposta ao terceiro risco: o da deturpação do conteúdo real do Tratado. Vozes apocalípticas logo vieram dizer que vinha aí o directório das grandes potências europeias, que se tratava de impor o federalismo à força, que a Comissão iria definhar, que se estava a "militarizar" a Europa, inclusive que se estaria a fazer reentrar a pena de morte por via da Carta dos Direitos Fundamentais! Estas reacções típicas de especialistas em sound bites contam com a complexidade do Tratado como aliada, sabendo que a desmontagem destes "fantasmas" exigirá sempre tempo e muita pedagogia até que se possa repor a verdade ou delimitar a exacta dimensão das críticas assim formuladas.
Não será possível virmos a ter um debate racional sobre o Tratado?
IDENTIDADE E MUDANÇA António Vitorino jurista
A decisão de aprovar o Tratado de Lisboa por via parlamentar provocou, naturalmente, uma forte reacção crítica da parte daqueles sectores que são contra o próprio Tratado.
Compreende-se que contando o Tratado, à partida, com o voto favorável do PS, do PSD e do CDS, os seus opositores reencaminhem para a via referendária a esperança de impedir a sua entrada em vigor.
Claro que representando aqueles três partidos cerca de 90% dos eleitores e à luz das sondagens que indiciam um apoio muito vasto na opinião pública quer ao projecto europeu quer ao próprio Tratado de Lisboa, pode-se dizer sem grande margem de erro que quem pretende um referendo não acalenta verdadeiramente a esperança de que o voto popular viesse de facto a inviabilizar o Tratado.
Percebe-se, pois, que a defesa do referendo correspondia ao objectivo de protelar o processo de aprovação do Tratado de Lisboa em Portugal e assim dar alento a todos os que noutros países se opõem à sua aprovação e reivindicam a realização de referendos.
Do mesmo modo o recurso a um referendo acalentaria a expectativa de vulnerabilizar a legitimidade do Tratado no caso - aliás provável - de acabarem por acorrer às urnas menos de 50% dos portugueses, à semelhança do que sucedeu em todos os três referendos já realizados entre nós, inclusive naqueles casos em que o assunto provocava uma polarização mais relevante na sociedade portuguesa, como no referendo sobre o aborto.
Em Espanha, o referendo sobre o Tratado Constitucional registou cerca de 70% de votos favoráveis mas apenas 38% de participação.
Por isso a argumentação dos críticos da aprovação parlamentar assenta na alegada violação de um compromisso eleitoral. O que suscita a questão da identidade entre o defunto Tratado Constitucional (em relação ao qual se reportava especificamente o compromisso eleitoral) e o novo Tratado de Lisboa.
Ora, a principal diferença entre os dois consiste precisamente na sua natureza essencial.
O Tratado Constitucional tinha uma ambição refundadora da própria União Europeia. Substituía os tratados anteriores em bloco por um novo texto único que, em cerca de dois terços, retomava as normas já actualmente em vigor, muitas delas mesmo desde o originário Tratado de Roma. Mas, porque se alterava o seu enquadramento qualitativo, passando a explicitar-se uma natureza constitucional à escala europeia, o Tratado Constitucional pressupunha uma renovação da legitimidade do conjunto do projecto europeu, recolocando-se à votação, fosse por via referendária fosse por via parlamentar, todas as normas do acervo comunitário.
Esta ambição constitucional, esta dimensão refundadora foi, aliás, um dos principais argumentos usados contra a sua aprovação, quer naqueles países que fizeram referendos negativos (França e Holanda) quer entre nós. Nessa ambição constitucional os seus críticos identificavam uma opção federalista ou um rumo de construção de um "superestado" europeu que almejaria substituir, a prazo, as soberanias nacionais.
Eliminada a ambição constitucional no Tratado de Lisboa, deixada cair a vontade de refundação da União expressa num Tratado único auto-intitulado de Constitucional, compreende-se mal que quem tão veementemente criticou tais opções venha agora silenciar esta diferença ou degradar a sua importância em nome do objectivo de defender a submissão do Tratado de Lisboa a um referendo popular.
No que à substância das políticas diz respeito o Tratado de Lisboa também apresenta alguns traços relevantes que o diferenciam do Tratado Constitucional, quer no que diz respeito às condições de aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais e das regras jurídicas do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (incluindo as regras sobre o espaço Schengen) quer no que diz respeito à política externa e de segurança comum.
Por contraste, o principal traço de identidade entre os dois tratados traduz-se nas inovações introduzidas na arquitectura institucional da União pelo Tratado Constitucional e que foram no essencial, embora com adaptações, retomadas no Tratado de Lisboa.
António Vitorino jurista
O tema de hoje é incontornável: o Tratado de Lisboa, pois claro! Com a assinatura, em Lisboa, deste Tratado encerra-se um período de dúvida e de incerteza sobre o sentido das reformas institucionais da União Europeia, após a recusa do Tratado Constitucional nos referendos francês e holandês.
Como é característico na União o fim de um ciclo corresponde à abertura de um outro. Desde logo porque, uma vez assinado, o Tratado de Lisboa terá que ser submetido a ratificação por todos os 27 Estados membros, prevendo-se que esse processo se desenrole no período de escassos onze meses, tendo em vista a sua entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2009.
Como já se percebeu pelos primeiros tiros de aviso, o debate para já vai centrar-se na escolha do processo de ratificação, se por referendo se por via parlamentar.
Trata-se de um debate legítimo mas não se pode dizer que seja um debate europeu. Isto porque cada Estado é livre de decidir da forma por que opta ratificar o novo Tratado.
A teoria conspirativa diz que há um "pacto de sangue" entre as lideranças europeias para não levar a cabo referendos. Com a conhecida excepção da Irlanda, que a tal se encontra obrigada por imposição constitucional.
Pessoalmente não creio nessa tese. Mas veremos como as coisas se vão passar nos vinte e sete e depois tiraremos as conclusões.
Independentemente da forma de ratificação, o próximo período vai ser particularmente exigente na análise e no debate das próprias soluções de fundo que o Tratado consagra.
Com efeito, seria uma oportunidade perdida que nos esgotássemos nas possíveis controvérsias sobre a forma de ratificação, passando para segundo plano as soluções substantivas do Tratado.
Creio que o valor acrescentado do Tratado de Lisboa terá que ser aferido em função de três critérios fundamentais. Por um lado, o critério da questão do poder, isto é, do impacto que as reformas institucionais terão no equilíbrio de poderes interno à União, tanto no que diz respeito à relação entre Estados de grande dimensão e os de pequena e média dimensão como no que concerne ao protagonismo das diversas instituições (Conselho, Comissão e Parlamento).
Em segundo lugar, avaliar o valor acrescentado do Tratado de Lisboa quanto às competências que são conferidas à União, designadamente naqueles domínios onde se inova, com especial destaque para a política externa e de defesa e para as políticas de imigração e asilo e de cooperação policial e judicial.
Em terceiro lugar, a reforma dos Tratados foi iniciada por uma Declaração anexa ao Tratado de Nice, em Dezembro de 2000, com o objectivo de aproximar os cidadãos da União. E se é verdade que a proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais da União, em Estrasburgo, na passada quarta-feira, representa, sem dúvida, um elemento desta aproximação, não é menos verdade que numa importante extensão este objectivo tem nos Tratados apenas um ponto de partida mas a sua plena efectivação depende sobretudo das políticas que a União prossiga em concreto. A título de exemplo refira-se que o Tratado de Lisboa inova (quer em relação aos Tratados existentes quer em relação ao Tratado Constitucional) no domínio da política energética e da luta contra as alterações climáticas, mas como é óbvio as simples bases legais não são em si suficientes para responder aos anseios e angústias dos cidadãos neste domínio tão delicado como crucial para o nosso futuro colectivo.
O que significa também que o debate sobre o destino do Tratado de Lisboa estará intimamente associado ao ambiente económico e político que as instituições da União e os governos nacionais criarem em torno das políticas concretas a prosseguir já durante o próximo ano de 2008.
Neste momento de celebração registe-se, pois, que a presidência portuguesa cumpriu o que se lhe pedia, estando por isso de parabéns e sendo credora de um merecido reconhecimento por parte de todos os europeus.