segunda-feira

Realismo político e direito internacional - por Francisco Sarsfield Cabral -

Realismo político e direito internacional, - in Público, 14 Jan./2008
A diplomacia é “a arte da esperança”, disse há dias Bento XVI, depois de traçar um quadro nada cor-de-rosa dos conflitos internacionais. Antes, na mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro), o Papa afirmara algo aparentemente utópico: “a força há-de ser sempre disciplinada pela lei, e isto mesmo deve acontecer também nas relações entre Estados soberanos”.
Há um ano Bento XVI escrevia: “a partir da consciência de que existem direitos humanos inalienáveis ligados com a natureza comum dos homens, foi elaborado um direito internacional humanitário”. E lamentava não ter esse direito sido respeitado na guerra do Líbano.
E na mensagem de 2000 João Paulo II dizia que, “sem mais adiamentos, é necessária uma renovação do direito internacional, que tenha o ponto de partida e critério fundamental de estruturação no primado do bem da humanidade e da pessoa humana sobre qualquer outra coisa”.
Estas declarações surgem aos olhos de muitos como meros votos piedosos. Uma simpática utopia sem consequências práticas: música celestial. Pois não é a cena internacional dominada pela força? No interior dos países, o Estado, com o seu monopólio do emprego legítimo da violência, assegura o cumprimento das leis. Pelo contrário, no plano internacional vive-se no “estado de natureza” de Hobbes, a luta de todos contra todos.
O “realismo” dos cépticos quanto ao direito internacional não repara, todavia, nalgumas mudanças. Há meio século alguém poderia prever que um ex-chefe de Estado estrangeiro – Pinochet – pudesse, em 1998-99, ficar detido longos meses em Inglaterra (onde o sistema judiciário funciona) em resultado de um pedido de extradição vindo de um outro estrangeiro (o espanhol Baltazar Garzon) envolvendo actos praticados enquanto Presidente do Chile?
A soberania dos Estados já não é um valor absoluto. O princípio da não ingerência nos assuntos internos de um Estado permitia a qualquer tirano chacinar os seus “súbditos”, sem que ninguém de fora o pudesse travar. Já não é assim: as pessoas, e não só os Estados, começam a ser consideradas sujeitos de direito internacional. A comunidade mundial pode e deve intervir, violando soberanias nacionais, desde que mandatada pela ONU.
Bem sei que este direito de ingerência humanitária é ainda incipiente, funciona mal e até recuou nos últimos anos (ao que a política externa de Bush não foi alheia). Mas a tendência de longo prazo vai no sentido do reforço do direito internacional. É uma das grandes tarefas políticas do séc. XXI.
Recorde-se que o direito interno dos Estados também era aplicado de forma muito imperfeita ainda há pouco mais de um século. Quem, pertencente às “classes altas”, matasse ou mandasse matar alguém no séc. XIX português tinha boas hipóteses de escapar à justiça (Vieira de Castro, que matou a mulher adúltera, foi uma excepção, por isso deu brado). As probabilidades de condenação eram bem maiores para as “classes baixas”. De então para cá, alguma coisa mudou, embora ainda não o suficiente.
Aliás, o desrespeito pelo direito internacional manifestado nos últimos anos pelos EUA (rasgando tratados, desprezando as Nações Unidas, etc.) teve correspondência em “facadas” no direito interno. Por exemplo, ao retirar direitos de defesa aos suspeitos de terrorismo e ao aceitar, na prática, a tortura. Direito interno e direito internacional não estão tão afastados quanto às vezes se diz.
Agora, Condoleezza Rice pede ajuda aos outros países para que Washington possa encerrar Guantanamo. Ou seja, mesmo com Bush há evolução. Mas esta tem de se acentuar no futuro. Porque o direito internacional, para ser eficaz, precisa de legitimidade e de alguma força.
A legitimidade implica uma ONU renovada. E a força não dispensa o poder militar americano. As duas coisas só serão possíveis com o empenhamento da única super-potência, que falhou até aqui.
Mas o direito internacional, como o interno, não pode alhear-se da moral. Diz Bento XVI: “Existirão normas jurídicas para as relações entre as nações que formam a família humana? E, se existem, serão operativas? Eis a resposta: sim, as normas existem, mas para fazer com que sejam verdadeiramente operativas é preciso subir até à norma moral natural como base da norma jurídica; caso contrário, esta fica à mercê de frágeis e provisórios consensos”.
Francisco Sarsfield Cabral
Jornalista
Obs: Uma interessante reflexão que compulsa três variáveis, cada vez mais necessárias, na contemporâneidade: 1) compreender a natureza e limites da crise do Estado soberano; 2) estabilizar a doutrina da ingerência nos assuntos internos de outro Estado sempre que questões humanitárias o reclamem; 3) e a tão desejada reforma politico-institucional da ONU - que coadjuvaria naqueles duas primeiras condições - em prol de um Direito Internacional Público renovado e personalista para este 1º quartel do séc. XXI. Portanto, mais um bom artigo do Francisco.