quinta-feira

O sono e a morte. O sono da morte

O sono é um monstro apoiado em muletas, referia o genial Salvador Dalí - que tinha imenso prazer em partir as montras nas ruas de Paris para depois entrar e passar o cheque. Era algo que o excitava. Mas o sono é algo mais do que esse monstro, o sono é a primeira aparência empírica da morte; o sono é irmão da morte, dizia Homero - outro clássico que ficou, mas não partia montras.
A morte é um sono, a metáfora do sono permanece ancorada no mais profundo das almas. Muitos dos nossos pensamentos, desejos, pulsões se arranjam aí, em pleno sonho. Portanto, quando adormecemos nunca sabemos o que vamos encontrar e quem fala por nós nesses desafios tão inesperados nessa descida ao fundo da alma.
Mas o sono é complexo, e pode dividir-se entre o sono nocturno dos vivos, o sono da morte e o sono fetal. Os três estão ao nível das profundezas da nossa vida. Uma vida tão pequena quanto curta, por vezes miserável, banhada por esse grande sono. Que, por sua vez, se pode desdobrar-se entre o sono do berço, o sono do túmulo e o sono da pátria - do qual saímos de manhã, e para o qual entramos à noite, como dizia Karl Joel.
Mas o sono também anda associado à noite, onde tudo é desmaiado, grávido. Dado que as noites são a morte dos dias, mas também as suas mães - que despontam com o nascer do dia, a luminosidade dos astros.
Os primeiros instantes do sono são quase sempre a imagem da morte. Aquele entorpecimento nebuloso que se apodera do nosso pensamento e do qual não conseguimos determinar a nossa própria existência. É o momento em que as noções de espaço e de tempo se modificam num vago terreno movediço e subterrâneo que se vai iluminando gradualmente, de onde se destaca a sombra da própria morte. É aí que o mundo dos espíritos se abre para nós.
O grande desafio do sono é que nunca sabemos ao certo quando e como acordamos, e como viajamos nele. Sendo as coisas como são quem não preferia morrer em pleno sono, nessa dança dos espíritos.
Ir para a cama pensando que se vai dormir um sono justo e acordar a horas é sempre uma promessa arriscada. Um risco que somos obrigados a assumir, todas as noites, sempre que dormimos - de mãos dadas com a morte, alí ao lado, como se fosse uma 3ª gémea do par de mesinhas de cabeceira cobertas de pó.
A alternativa a isto é andar sempre acordado, mas morre-se na mesma, e mais depressa!!!