sexta-feira

O CICLO DA JUSTIÇA - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso, a imagem já integra o rizoma. AV disse aqui tudo quanto havia pensado mas que não conseguiria transmitir.
António Vitorino
jurista
Concluiu-se há dois dias o julgamento dos acusados pelos atentados terroristas de Madrid, de Março de 2004.
Estava em causa, em primeira linha, julgar aqueles que, com diferentes graus de participação, haviam perpetrado um dos mais bárbaros actos de violência terrorista. Assim o exigia a memória das 191 vítimas mortais e a presença dos 1800 feridos e dos familiares de uns e de outros. Mas estava também em causa a credibilidade do Estado de direito democrático (de todos os Estados democráticos e não apenas do espanhol) na eficácia da luta anti-terrorista tal como é conduzida nas várias democracias europeias.
Sabia-se, à partida, que a maioria dos autores materiais não estaria no banco dos reús. O comando suicidário havia escolhido a morte não no próprio atentado, mas como resposta ao cerco policial e dois dos presumíveis autores materiais conseguiram mesmo escapar, um deles tendo entretanto morrido no Iraque. Mesmo assim dois dos condenados foram-no em termos de autoria material, pela colocação de explosivos e pela pertença à célula terrorista que actuou naquele fatídico 11 de Março, o que só por si representa um importante resultado do julgamento. As condenações evidenciaram a importância das escutas como meio probatório (algumas delas fornecidas por autoridades de segurança de outros países), bem como a vulnerabilidade que representa para a nossa segurança o acesso a explosivos, fornecidos a partir de uma exploração mineira nas Astúrias.
No plano dos factos, a sentença da Audiência Nacional de Madrid foi inequívoca na imputação da autoria: tratava-se de uma célula jhiadista estabelecida em Madrid, com conexões internacionais, muito em especial a grupos terroristas que actuam em Marrocos. Do mesmo modo o tribunal foi claro ao afastar qualquer conexão com a ETA, questão que havia estado no centro das divergências entre o Governo de então, do Partido Popular, e a oposição socialista. Mau grado a clareza da sentença parece que este confronto político tenderá a permanecer, agora entre o Governo do PSOE e o PP na oposição. Mas a controvérsia política não pode ensombrar o significado da decisão judicial. Algumas associações de vítimas consideraram a sentença pouco severa e pretendem dela recorrer. Compreende-se humanamente e assim se reforça a natureza eminentemente democrática do processo judicial em Espanha. O recurso é uma das garantias de defesa que não foi postergada neste processo e que constitui a matriz dos nossos sitemas judiciais democráticos.
A surpresa da sentença veio do facto de o tribunal de Madrid não ter dado como provadas as acusações sobre a autoria moral dos atentados, muito em especial no caso do chamado "Egípcio" que a instrução apontava como o cérebro da operação. Mas também neste aspecto, o de sete dos acusados terem sido absolvidos por insuficiência de provas, a sentença espanhola ganha credibilidade. O tribunal não tinha uma agenda preestabelecida, e, como sucede em todos os casos penais, julgou em função das provas produzidas em julgamento público sujeitas ao contraditório dos acusados. Não será, pois, surpresa que a prova da autoria moral seja, neste tipo de casos, atenta a ausência dos autores materiais, particularmente difícil. Mas o processo do 11 de Março vale para além das condenações que produziu.
Trata-se do primeiro grande julgamento de um atentado terrorista em território europeu perpetrado pelo fundamentalismo radical islâmico. Foi feito um julgamento em audiência pública, as provas da acusação foram sujeitas ao contraditório dos acusados, a defesa destes teve acesso pleno a essas provas e usufruiu das garantias de defesa do processo penal comum em Espanha. Tudo isto reforçou a legitimidade democrática da decisão condenatória e a autoridade moral do ressarcimento das vítimas. Não houve tribunais especiais, não se aplicaram leis de emergência, não se rompeu com a matriz do processo penal democrático, respeitou-se a igualdade de armas das partes, o tribunal decidiu em absoluta independência, o seu veredicto está sujeito a recurso. Esta é, pois, a maior derrota do terrorismo global desde o 11 de Setembro de 2001.

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Obs: Mais um bom artigo de António Vitorino. Além de rigoroso na reposição dos factos, que nem sempre se apanham em notícias on tv, o articulista vê para além da espuma dos dias - que esta nova metodologia de fazer política assente no terrorismo - veio trazer às nossas sociedades. Elogie-se, pois, o autor da matéria porque isto também é serviço público.