O caso Fernando Charrua - por António Marinho Pinto -
O caso Fernando Charrua (Público assin.)
21.06.2007, A. Marinho e Pinto
Poderão os funcionários do Estado ter conversas privadas nos locais de trabalho?
Um professor em comissão de serviço na Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) foi alvo de um processo disciplinar por, alegadamente, ter injuriado o primeiro-ministro no decurso de uma conversa com um colega no seu gabinete de trabalho. Não se cuida de saber o teor exacto das palavras proferidas. O professor em causa, Fernando Charrua, afirma que se limitou a dizer uma piada sobre a licenciatura de José Sócrates, enquanto a directora daquele organismo diz que se tratou de uma injúria. Vamos, por economia de raciocínio, admitir que a directora da DREN tem razão e que o professor em causa proferiu mesmo expressões injuriosas, ou seja, ofensivas da honra e da consideração do cidadão que desempenha actualmente as funções de primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates.
O primeiro aspecto relevante consiste no facto de as injúrias não terem sido proferidas em nenhum documento de trabalho (carta, ofício, relatório, apontamento, etc.), nem em nenhuma reunião, encontro ou tarefa funcional, nem publicamente, mas sim no decurso de uma conversa particular num gabinete de trabalho com um colega do mesmo organismo.
Poderão os funcionários do Estado ter conversas privadas nos seus locais de trabalho? A resposta não pode deixar de ser positiva. Um qualquer cidadão, incluindo as figuras públicas, podem ter conversas privadas, mesmo em locais públicos e, por maioria de razão, nos seus locais de trabalho. A natureza privada de uma conversa não depende do lugar onde a mesma tem lugar, mas sim do clima de reserva em que decorre.
E, se a conversa era reservada, é inaceitável que se torne público o seu teor, mesmo que (sobretudo) por um dos interlocutores. O professor Fernando Charrua acreditou que o colega com quem dialogava merecia a confiança de partilhar uma conversa privada e este traiu essa confiança e atraiçoou-o, indo informar um superior hierárquico do teor da conversa.
O segundo ponto relevante consiste na circunstância de a natureza alegadamente injuriosa da conversa consubstanciar, juridicamente, um abuso do direito de expressão. Em termos mais rigorosos: traduz-se num exercício abusivo da liberdade de expressão. Este direito (de todos poderem exprimir e divulgar livremente o seu pensamento) é um direito fundamental da pessoa humana e como tal está consagrado no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Só que nenhum direito é absoluto, no sentido de poder ser exercido em termos de violar desnecessária ou desproporcionadamente outros direitos com igual dignidade jurídica (tal como a honra, previsto no artigo 26º da CRP). Quando isso acontece, o ordenamento jurídico prevê sanções para o abusador.
Aqui chegados, surge a questão de saber quais as concretas sanções previstas. Como, in casu, tais sanções se traduzirão sempre numa limitação a um direito fundamental, é a própria CRP que procede ao enquadramento jurídico do respectivo regime sancionatório. E assim é que no seu artigo 37º, nº 3, se diz expressamente que "as infracções cometidas no exercício destes direitos (de expressão e de informação) ficam submetidas aos princípios gerais do direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei".
Portanto, o direito disciplinar do funcionalismo público não pode ser usado para sancionar um funcionário, por, numa conversa privada, ter injuriado terceiros, incluindo o primeiro-ministro. Este poderá, se o quiser, reagir como qualquer cidadão, no local próprio, ou seja, nos tribunais judiciais, intentando o correspondente procedimento criminal pelo crime de difamação contra quem proferiu as palavras ofensivas. O que não tem é o direito de recusar a protecção do direito criminal e ao mesmo tempo aproveitar-se ou beneficiar do regime sancionatório especial do direito disciplinar.
Mais. O cidadão José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, tinha o dever de impedir que uma zelosa subordinada sua (a directora da DREN) procedesse disciplinarmente contra um funcionário que alegadamente o ofendera numa conversa privada. Já que recusa a tutela penal, deveria igualmente recusar a disciplinar.
O direito disciplinar existe para punir infracções disciplinares, ou seja, as que são cometidas por funcionários no exercício das respectivas funções. Mais. A CRP não prevê (portanto, não permite) que as infracções cometidas no exercício do direito de expressão (enquanto direito fundamental) sejam apreciadas em sede do direito disciplinar. Isso foi expresso de forma bem clara pelo legislador constituinte.
Aliás, ainda não há muitos anos, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesse sentido, num caso formalmente idêntico a este. Um juiz desembargador, dirigindo-se a um colega, disse que todos os membros do Conselho Superior da Magistratura eram uns filhos da puta. O interlocutor, que era membro do CSM, participou a este órgão, que deliberou punir o primeiro com uma sanção disciplinar. O visado recorreu para o STJ, que anulou a sanção e absolveu o arguido, justamente por considerar que um acto da vida particular de um magistrado judicial só constituirá uma infracção disciplinar, se, por um lado, se repercutir na sua vida pública e, por outro, se revelar incompatível com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções. E o STJ acrescentou: "Não o será um acto da vida particular que não seja de molde a causar perturbação no exercício das funções ou de nele se repercutir de forma incompatível com a dignidade que lhe é exigível." Este é, pois, um regime que, por maioria de razão, se deveria estender a todos os funcionários do Estado.
O primeiro-ministro certamente não ignorará o que dele se dirá no quartéis, nas salas de professores das escolas, nos hospitais e, em geral, nas repartições públicas do país. E, nem por isso, daí vem nenhum mal especial para o funcionamento dos órgãos do Estado e da administração.
Em contrapartida, o procedimento disciplinar instaurado ao professor Fernando Charrua será (sobretudo se acarretar qualquer sanção) um convite à generalização da delação entre os funcionários públicos.
Há no aparelho de Estado, sobretudo na administração pública, pulsões liberticidas e de delação que urge combater. Essas pulsões têm as suas raízes na cultura dominante no Estado Novo. O que havia de pior nesses tempos de tirania não era a actuação repressiva das polícias ou de outros organismos de vigilância e protecção do regime. O que havia de pior era, precisamente, a existência dos "informadores", dos "bufos", ou seja, de pessoas aparentemente normais, que se sentavam à nossa mesa, que entravam nos nossos gabinetes e até nas nossas casas, com quem por vezes se tinha conversas reservadas e até íntimas, mas que, depois, traiçoeiramente, pela calada, iam comunicar essas conversas à polícia ou aos superiores hierárquicos.
É essa actuação ignóbil, é, em suma, essa imensa ignomínia, que urge banir definitivamente da sociedade portuguesa e da administração pública. E a melhor forma de o fazer é, para começar, não compactuar com as suas manifestações em nenhuma circunstância. A melhor forma de combater essa abjecção é fazer precisamente o contrário do que fizeram a directora da DREN (ao instaurar o processo disciplinar a Fernando Charrua) e o primeiro-ministro e a ministra da Educação (ao manterem em funções essa zelosa e perseguidora funcionária).
Advogado PS: Faça-se um autocarro de cópias de deixe-se metade em S. Bento e a outra metade na nuca da dona guida da DREN. DE seguida, demita-se a senhora dona Guida embrulhada em todo aquele papel. Seria um serviço à República, ao regime e à democracia. E, já agora, à saúde e higiéne mental dos portugueses. Pelo que espera Sr. PM? Ah, e com um pedido de indemnização por danos internos e externos a imagem de Portugal de que já nem ICEP ou o Figo conseguem remediar, às vezes este último só agrava.
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