O tempo que passa neste Portugal adiado: em queda livre na ampulheta do tempo
Hoje tive oportunidade de almoçar com uma pessoa que já não via desde 1991. Como o tempo passa, e nós pouco ou nada podemos fazer para o segurar e fixar as pontas para corrigir umas coisas, melhorar outras, evitar certos acidentes, enveredar por outros caminhos. O tempo é o tempo, um ditador, um mestre, um terraplanador de situações e de acontecimentos. Ainda há não muito tempo tempo Carlos Lopes era um herói nacional, Fernando Mamede também. Ainda não há muito tempo Cavaco era PM, o melhor desde o post-25 de Abril, e o famoso James Bond atacava o comunismo soviético e as suas perversidades económicas e sociais, o capitalismo neoliberal também as têm, mas sob a forma da liberdade de expressão. A vantagem era que James Bond, 007 fazia amor com bonitas mulheres e rematava tudo com um Martino rosso, sem o papagaio.. Também aqui, temoz azar: o nosso parque de natalidade está uma desgraça.
Dantes esses filmes ficavam como referências, os políticos também. Depois veio a meretriz triturante da globalização e esbulhou-nos todas essas referências, secou-nos a memória, de modo que hoje temos momentos, pontos de tempo sem grande continuidade social, política e cultural. Hoje, o nosso mundo terraplanou essas memórias-referência: que vale hoje o 007 ante a concorrência selvagem da globalização competitiva nas áreas das TIC? Que memória hoje tem as gerações mais novas de Cavaco em S. Bento? Quem se lembra hoje do que foi a discussão em torno da construção do CCB por Cavaco (que ofuscava o Mosteiro dos Jerónimos), mas que hoje serve para lançamento de candidaturas por parte de todos os partidos políticos?
Mesmo que tenhamos alguma memória desses ícones da política, das artes, do António Variações, do desporto, das teconologias modestas de serviço - hoje os heróis são outros, parece até que o talento se dissolveu e passou a funcionar à velocidade da luz e escapa-se mais rápido por entre os dedos das mãos: seja na capacidade de concepção de políticas públicas, nas artes, na produção científica, tudo hoje é mais fungível e esgota-se mais depressa. E mais grave: não deixa referências ou ritmos de continuidade.. Vivemos num mundo de plástico.
Por que acontecerão as coisas desta forma? - atendendo a que nem a política nem a empresa ou a sociedade abriu processo de falência por excesso de talento ou de recursos. Quer-me parecer que esta erosão de ideias políticas, sociais e económicas é um processo secado pela globalização infeliz do nosso tempo (que oferece oportunidades para os aristocratas do risco e penaliza os sedentários desprotegidos) - acabando por tornar árida a intervenção política, social e económica dos agentes sociais e de poder que "dão cartas" na sociedade.
Dizem-nos que o mundo é hoje composto de tantas oportunidades quanto risco e ameaças mas, na realidade, essa é a retórica discursiva da globalização para inglês ver, pois o crescimento do PIB em Portugal é verdadeiramente miserável, e em vez de convergirmos com os indicadores de desenvolvimento social e humano dos outros países da Europa - deles divergimos. Será isto culpa apenas do governo? E a sociedade, e o empresariado, e os costumes, e as leis, e a carga fiscal, e a mentalidade, e a cultural de organização (!!??) ..e tanta outra coisa.
Vivemos no canto sodoeste da Europa, mas como o nosso défice estrutural se situa também ao nível da natalidade, o quadro ainda fica mais negro. Vivemos num país que, em certos aspectos, ainda é pior do que a China. Fizémos algumas descolonizações e revoluções, mas não fizémos nem a descolonização cultural nem a revolução das mentalidades.
O tempo passa, algumas pessoas não envelhecem, mas o mundo ressente-se destes corsi e ricorsi, avanços e recuos no País. E em Portugal, lamentavelmente, temo bem que os recuos sejam mais fortes do que os avanços. No fundo, queremos uma coisa, mas a vida troca-nos sempre as voltas e ficamos com outra... É um pouco como os matrimónios, já para não falar no património.
O tempo continua a passar indiferente a estes peanuts do miserável PIB nacional. Até porque a linha de contagem do tempo é a eternidade, e a nossa experiência de vida é, miserávelmente, curta e perene, senão mesmo trágica.. Somos a geração, várias gerações, da queda livre na ampulheta do tempo. Um dia escorregamos todos com Portugal lá dentro.
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