sábado

O passado revisitado - por António Costa Pinto -

O passado revisitado (link) António Costa Pinto
Professor universitário
Tivemos uma semana "Salazar". Não houve nenhum cronista ou comentador que não tivesse dado a sua opinião.
Nem a crise no PP nem qualquer medida governamental chamaram a atenção.
Aproveitando a ocasião, até um micropartido de extrema-direita captou a atenção dos media.
Seria irresponsável dizer que a coisa não teve impacto, mas este discurso sobre as misérias da nossa democracia como responsável pelo acontecimento tem pouca base, até porque ele é parte integrante das características de qualquer regime democrático. O mesmo se passa com o passado. Como já foi dito e redito, se não fosse um concurso mas uma sondagem com amostra representativa, os velhos heróis do passado estariam de boa saúde, como têm ilustrado os estudos de opinião publicados nos últimos anos. O que é interessante aqui é a consciência identitária que os portugueses demonstram, escolhendo os agentes da construção real e imaginária da nacionalidade, de Afonso Henriques a Camões.
Eu pensei que com a modernização imediatista, acompanhada de um grande deficit educacional, os que telefonaram para a RTP incluiriam neste tipo de concursos alguns futebolistas e apresentadores de televisão, mesmo sabendo que eram poucos. Erro. Votaram alguns activistas em três personagens do século XX, mas o passado mais remoto está de relativa boa saúde. É esse que é ainda hoje um património comum, mesmo que ele represente, ironicamente, uma acentuada continuidade entre o velho nacionalismo republicano e boa parte do salazarista. Apesar da descolonização re-cente, a gesta imperial do passado goza também de boa de boa saúde em Portugal.
Agora o que é enervante é o discurso próximo do populismo, que tenta sempre ver nas imagens benignas do passado autoritário uma consequência da "podridão da de-mocracia" actual. A vantagem dele é ter a variante de esquerda das "promessas de Abril por cumprir". Nesta área, felizmente, o PCP ainda existe. No dia em que houvesse um colapso rápido deste partido em conjuntura de crise, talvez o espaço populista estivesse criado e ainda víssemos muitos eleitores, num concurso bem mais sério, passarem de Cunhal a Salazar. Até agora, para nosso bem, as duas variantes ainda não se juntaram".
Obs: Vale bem a pena ler mais este artigo de António Costa Pinto acerca da consciência identitária dos portugueses que, em bando infotecnológico, telefonaram para o programa da Srª dona Mª Elisa para alcançar o "brilhante" resultado que é conhecido: ratificar o velho "Botas". Não sendo uma manifestação estruturante na sociedade portuguesa, não deixa de representar um sinal de que quando procuramos racionalizar o nosso passado à luz do presente registamos um gap terrível acerca do padrão de intencionalidade que ainda está instalado numa parte (ainda que segmentária) da sociedade portuguesa. E que neste tipo de programas se manifesta da forma mais perversa possível: envergonhando o nosso presente, obrigando-nos até a olhar o nosso passado como algo glorisoso de que hoje nos devemos orgulhar. De facto, assim não foi, e o mais grave em todo este espectáculo deprimente - representado em boa medida pela drª Odete e pelo drº Nogueira pinto, é que, por via dessa perversidade de votantes on line - o subconsciente colectivo dos portugueses fica pressionado a transferir do passado para o presente responsabilidades (históricas) que hoje não podemos assacar.