sábado

A honra do convento - por Francisco Seixas da Costa -

Nota prévia:
O emb. Seixas da Costa já nos habituou a intervenções de grande qualidade intelectual e oportunidade política, e sempre do lado certo da razão, da verdade, da justiça, da Liberdade. Confesso que gostaria de ter assinado esta reflexão. Parabéns ao seu autor, quanto a Aristides de Sousa Mendes só poderei dizer que é (também) um dos meus heróis. Salazar e cunhal somados e fundidos a 1000 graus ao pé de Aristides são poeira que desaparece num sopro ou espirro de Primavera. Daqui por um século as jovens gerações falarão mais em Aristides do que no ditador de direita que subdesenvolveu Portugal e no falso democrata de esquerda que, se não fosse Mário Soares, conduziria Portugal para o lado errado da História.
A honra do convento (link) Francisco Seixas da Costa
Diplomata. Embaixador de Portugal no Brasil
"A presença de Aristides de Sousa Mendes entre os dez nomes mais votados no concurso Os Grandes Portugueses constituiu para mim, ao mesmo tempo, uma surpresa e uma ironia.
Uma surpresa porque, não obstante já muitos conhecerem a história do diplomata que desobedeceu às suas instruções para obedecer à sua consciência, oferecendo vistos aos refugiados judeus que procuravam o consulado português em Bordéus, não estou certo de que a nossa sociedade tenha já, nos dias de hoje, uma sensibilidade ética tão apurada que a leve a optar espontaneamente pelo seu nome. Por isso, só posso louvar quantos se tenham mobilizado para assegurar o voto na figura honrada de Aristides de Sousa Mendes.
A suprema ironia da sua inclusão nesta lista deriva, naturalmente, do facto de, a seu lado entre "Os Grandes", figurar António de Oliveira Salazar, o chefe do Governo cujas ordens ele não respeitou e que, por essa razão, viria a destruir a sua carreira e a sua vida pessoal. Dirão alguns que Álvaro Cunhal também figura nessa lista, e foi bem mais perseguido que Sousa Mendes. São coisas de natureza diferente: Cunhal foi um líder partidário e simbolizava a outra face da vida política portuguesa. Salazar e Cunhal foram figuras mediáticas, nomes que recolheram emoções e po- larizaram o País. Por isso, cada um a seu modo, foram personalidades com poder e influência, seguidos por legiões de prosélitos. Aparecerem agora votados pela nostalgia destes últimos faz parte das leis da vida.
Não era esse o caso de Aristides de Sousa Mendes. Quantos, no Ministério dos Negócios Estrangeiros de então, esboçaram um gesto para defender o colega, a dignidade da sua atitude, a preservação da sua vida profissional? Dir-se-á que o ambiente político não ajudava, que a repressão estava ao voltar de cada esquina. Mas, e na oposição? Quem se lembrou então de Sousa Mendes, quem denunciou os arbítrios a que foi sujeito?
Não é com agrado que constato que a minha geração diplomática, a primeira que entrou para o Palácio das Necessidades depois do 25 de Abril, foi habituada a ouvir sobre Sousa Mendes, quase sempre, palavras pouco simpáticas de colegas mais antigos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Repito: tudo isto, depois do 25 de Abril! Não exagerarei se disser que, com muito poucas e bem honrosas excepções, a opinião largamente maioritária entre os poucos que se manifestavam sobre o tema, que durante anos foi sempre "incómodo" nas conversas nas Necessidades, continuava a ser muito pouco generosa para a memória do colega rebelde, como que prolongando no tempo a condenação da sua decisão de não cumprir quanto lhe fora ordenado pelo poder instituído e assistindo, com desagrado, à valorização pública desse dissídio. E isto era tão válido para quem o tinha conhecido como para membros de gerações posteriores, que dele só haviam ouvido falar.
Recordo bem que, quando a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses criou, ao tempo de uma direcção de que fiz parte, um prémio a que decidiu dar o nome de Aristides de Sousa Mendes, vozes houve que, discreta mas significativamente, tentaram que ele viesse a ser titulado, nos anos futuros, por figuras diferentes da carreira diplomática. A frontal oposição de alguns de nós impediu que tal acontecesse. É que já estávamos a imaginar o que por aí viria em matéria de sugestões, para "compensar" o primeiro nome escolhido...
Há que reconhecer que, se não fosse a acção empenhada da sua família e da comunidade judaica internacional, Aristides de Sousa Mendes permaneceria, para sempre, na galeria dos nossos heróis desconhecidos. Portugal acordou muito tarde para a importância desta figura. Mas, pelo menos, acordou. E talvez o surgimento do seu nome entre Os Grandes Portugueses possa significar que há que não perder completamente a esperança de que, na memória colectiva do País, possa vir a sobreviver alguma dimensão ética, ao lado dos clichés politicamente correctos da nossa História e das notas caricatas dos radicalismos contemporâneos de sinal contrário.
Um tanto mais corporativamente, eu diria que fica também salva, desta forma, a honra do convento de Nossa Senhora das Necessidades."