quarta-feira

O debate parlamentar: um não cheira; o outro não ouve

Os debates parlamentares são sempre exercícios dialécticos interessantes pelo dizem e, sobretudo, pelo que ocultam no desencontro com a verdade sentida pelas populações no dia-a- dia. Governar é isso mesmo: mostrar tapando. Devemos confessar que Sócrates - apesar de ter a economia, o desemprego, os preços dos bens de 1ª necessidade contra si - ainda goza dum estado de graça assinalável - sempre reforçado pelas suas intervenções parlamentares no debate mensal. Falou de todos os sectores e sub-sectores da governação; M.Mendes tentou contrariar essa força da natureza que Sócrates - tribuníciamente - vem revelando; depois Louçã sempre muito oportuno em termos económicos, mas neutralizado pelo PM; Jerónimo é mais desembaraçado do que carvalhas, mas critica com um complexo genético que o tolhe: que o PS não esteja coligado com o PCP; depois a senhora dos Verdes, apêndice do PCP e sem sequer legitimidade popular. O cds é o PP, em busca de política por via de recortes de jornal. Tudo visto e somado - resulta, mais uma vez, um saldo francamente positivo para Sócrates e para o governo. Mas o que me preocupa não é Sócrates meter sempre M.Mendes no bolso, o que também não é difícil, políticamente falando, é claro!!! O que me preocupa é, num observação muito genérica, a sistemática repetição destes rituais da democracia revelando a distância entre o anunciado e o realizado, o prometido e o cumprido. Creio meio que o sucesso relativo de Sócrates se deve (ainda) à apatia geral com que as pessoas encaram os poderes da governação, daí um certo alheamento entre o que se prevê por parte dos agentes políticos e aquilo que se sente no quotidiano das pessoas, da vida da famílias. É deste gap, creio, que ocorre o tal desequilíbrio entre o anunciado e o realizado que tem interrompido a linha de trajectória de evolução da sociedade portuguesa nos últimos anos. Por vezes acho mesmo que o governo - em bloco - deveria passar um regime de vida semelhante aqueles que os homeless passam em Portugal. Cada qual com um saco cama deveria passar umas noites ao relento nas arcadas dos Terreiros do Passo que há por aí, por esse Portugal-profundo, só para experimentar a cor da privação, da fomeca, da falta de higiéne, enfim, de tudo aquilo que o sistema político não vê porque não tem expressão sociológica capaz de influenciar ou decidir processos de tomada de decisão ou modelar vontades com vocação de poder. O mais curioso em tudo isto, segundo creio, é constatarmos a falência da noção de política, que dantes era uma instância onde o discurso coincidia com o objecto, em que as palavras ditas faziam aparecer as coisas (feitas) que elas significavam. Hoje, essa falta de autenticidade parece ter sido substituída pela tal falência da política em materializar os projectos propostos, e o mais grave é quando se olha em redor só se vê um deserto de instrumentos capazes de inverter esta decadência da política - suprida pelo discurso mais ou menos habilidoso do poder. Hoje, em suma, nada nem nenhuma instituição ou agente de poder tem a força para garantir as condições de legitimidade que garanta ao poder e à sociedade a sua tradicional eficácia e continuidade. Pelo que creio estarmos todos órfãos e somos, cada qual à sua maneira, homeless na nossa própria vidinha, no nosso próprio mundinho.. Em cada assoalhada do nosso espírito não deixamos de pensar pequeno - um pouco como a dimensão e as expectativas do país que nos tolhe. Além de desregulados também não conseguimos regulador o regulador (o Estado). Foi assim que interpretei aquele gesto de Sócrates tapando o seu ouvido - como quem procura dizer: basta!!!; ladeado pelo seu braço direito - Pedro Silva (o "baby-face", hoje "muito bem" assessorado pela filha do ex-PR, j. sampaio..) - que parece também não querer "cheirar" a verdadeira realidade. Quem não cheira também não sente. Talvez por ambos saberem que a força do Estado e das suas instituições também já não são o que eram. O que não deixa de ser uma perda progressiva do referencial de força e de credibilidade do Poder e, como sabemos, como diria o poeta, é difícil traçar linhas na água... Até porque os mapas aí também são mais incertos e perigosos. Por vezes julgamos estar em Marrocos mas já navegamos na Indonésia... Sem sequer perceber o que hoje se passa na Europa.E quem diz Europa diz Portugal. Aliás, com tanta geografia cruzada eu próprio já nem sei onde nos inscrevemos geoculturalmente. Mas em termos económicos julgo não andarmos muito longe de África... A África dos nossos debates parlamentares.