segunda-feira

Mais um artigo excepcional sobre Judas Iscariotes - por Pre. Anselmo Borges

Lembro-me perfeitamente, miúdo, ter imensa pena de Judas. Achava aquilo tudo terrivelmente intrigante. Pelas pregações que ouvia, era como se entrasse num mundo muito negro: Jesus precisava do suplício da Cruz para nos salvar e, para isso, Judas tinha de entregá-lo àqueles que o crucificariam. A minha imensa pena derivava assim de uma percepção confusa do destino trágico que se abateu sobre Judas: ele teve de aceitar tornar-se um réprobo, para ser possível a salvação da humanidade. Muito mais tarde, obtive a minha pequena "vingança", ao ler o Monsenhor Quixote de Graham Green. Lá estava que uma Igreja cristã - se me não engano, a Igreja copta - contaria Judas na sua ladainha de santos. Tive uma surpresa boa, que me deixava fora da amargura que me causara a constante diabolização de Judas. Na base daquela imagem, estava uma concepção errada da salvação, pois o seu pressuposto era que tudo se teria passado no quadro de um mecanismo em que os seres humanos funcionavam como marionetas, movidas pelo destino, como se não existisse a liberdade e a história estivesse pré-determinada. Recentemente, falou-se muito do Evangelho de Judas, um texto que se enquadra na tradição gnóstica e em que a figura de Judas sai reabilitada. O que é, no essencial, a gnose? A gnose ou gnosticismo tem como objectivo essencial explicar a existência do mal, cuja origem se encontraria numa queda a partir da plenitude da divindade. Há uma distinção, decisiva, entre o Deus transcendente e desconhecido e o demiurgo, um deus menor e ignorante, que formou o mundo material, que é mau. Nalgumas correntes da gnose, era tal o desprezo pela matéria e pelo corpo que se afirmava que Jesus não tinha um corpo real. Neste mundo mau - a matéria chega a ser chamada um "aborto" -, há centelhas do mundo originário divino caídas no corpo humano. A matéria e o corpo são prisão da centelha da luz divina. A salvação dá-se pelo conhecimento (em grego, gnôsis significa conhecimento) desta centelha (alma, espírito) em que a essência humana consiste. Papel importante é atribuído a um salvador que participa da sorte dessas centelhas divinas e as reconduz ao mundo da luz. A salvação plena enquanto libertação dá-se na morte, quando a centelha se separa do corpo e volta à sua situação pré-existente de espírito puro na unidade divina. Percebe-se então que, no Evangelho de Judas, no contexto da gnose, Jesus apareça a rir, porque os discípulos estavam a prestar culto não ao Deus verdadeiro, mas ao demiurgo. Por outro lado, também se entende que Jesus peça a Judas para o entregar a fim de ficar liberto do corpo material e regressar à luz: "Excederás todos os outros. Pois tu irás sacrificar o corpo que me reveste". No Evangelho de Judas pretende-se reabilitar a sua figura. No entanto, é importante que se saiba que se trata de uma interpretação posterior aos Evangelhos canónicos - o texto original será do século II - e no contexto da gnose. Essa figura de Judas não corresponde à realidade histórica. Apesar disso, historicamente, a sua reabilitação é pertinente. A imagem comum de Judas é a do traidor de Jesus por dinheiro. Essa imagem não corresponde, porém, à verdade. O que se passa é que Judas pertencia de facto ao círculo íntimo de Jesus, que de tal modo confiava nele que era o ecónomo do grupo. Judas tornou-se discípulo de Jesus e, no quadro de um messianismo político, convenceu-se que ele, com todo o seu poder, concretizaria a chegada do Reino tão desejado por Israel. Mas, com o tempo, começou a sentir-se desiludido, porque a perspectiva de Jesus parecia diferente, não correspondendo aos ideais do messianismo político. Como escreve o exegeta Padre Carreira das Neves, é, pois, "natural que o amigo Judas, desencantado com Jesus, o entregue ao Sinédrio para que Jesus se resolva, de uma vez por todas, a desencadear o Reino de maneira apocalíptica e apoteótica. Nada melhor do que aproveitar a estadia em Jerusalém, na véspera da Páscoa, para que a sua manobra resulte". A estratégia de Judas não resultou e Jesus foi mesmo condenado à morte na cruz. Foi então que, desesperado, não suportando o sucedido com o amigo, Judas se enforcou. O suicídio é a prova de que não pretendia realmente a morte de Jesus. Se o seu móbil fosse atraiçoá-lo e umas míseras trinta moedas e as boas graças do Sinédrio, não se teria enforcado. O drama de Judas foi não ter percebido que Jesus não era um Messias político e, sobretudo, ao contrário de Pedro, não ter confiado no perdão do amigo.
Conheça-se também a tese da autora deste livro, Fátima Pinto Ferreira. Depois de se ler o artigo de Anselmo Borges e de se conhecer a tese que estrutura este romance (realista) veja-se se se identificam mais diferenças ou convergências. Afinal, quem foi Judas Iscariotes?!
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  • Nota:
  • Importa compulsar as diferenças ou as convergências de uma tese e de outra sobre o sentido e direcção da vida de São Judas Iscariotes em Jesus. Afinal, parece que Judas não foi quem a igreja - ao longo dos tempos - pintou. Aliás, os homens nunca são o que parecem, para o melhor e para o pior...
  • O blog Cão com Pulgas tem tratado esta questão. Importa ver ou rever. (...) A quem interessava que Judas fosse o culpado senão à própria Igreja? (pergunta a autora deste livro)
(...) Eu vou dizer-lhe qual o meu raciocínio. É que os instigadores e os decisores da morte de Cristo foram os representantes do poder temporal e do Sinédrio. Ora, a Igreja não podia permitir que essa realidade fosse divulgada por espelhar a sua própria conduta. Daí que Judas Iscariotes tenha sido condenado pelos homens. À revelia de Cristo, que não o condena em parte alguma dos evangelhos. (...) Os testemunhos que temos dizem-nos claramente que o décimo segundo discípulo a ser escolhido foi Judas Iscariotes. ele era um dos doze e, assim, foi considerado no Didakhé, que foi compilado até ao ano 100, e que era um manual litúrgico, cujo nome completo é A doutrina do Senhor através dos doze apóstolos aos gentios. Mais uma vez, algo não bate certo. Ou bem que Judas Iscariotes foi um apóstolo ou bem que foi um traidor cobarde que não aguentou o seu crime! No século I da nossa época, ele era um apóstolo e está referido como tal. Quando passou a ser traidor? Quando a Igreja se corrompeu e se deu conta que tinha poder entre os homens! (...) - Repito, Judas Iscariotes não traiu Jesus Cristo! Judas foi o mais santo dos discípulos. Foi o único, entre os doze, em quem Jesus confiou que o iria ajudar a cumprir a sua missão. Sabemos que Jesus vacilou perante a chegada da hora da prisão e do sofrimento. Nenhum dos outros o ajudaria a completar o plano divino. Porque eram bons? Não. porque eram fracos. Porque não raciocinavam a fé, eram ainda muito terrenos e apegados aos afectos. Ele era sobretudo espírito e precisava de um cooperante capaz de desencadear o passo seguinte, que fosse um espírito mais aperfeiçoado que o dos outros escolhidos, que aceitasse ser o culpado. (...) Veja, se Cristo predisse a Pedro que este o iria trair, não saberia que Judas o faria? E Jesus nunca o disse. Terminada a Ceia, disse-lhe foi para ir fazer o que tinha a fazer e depressa. Estas palavras revelam que ambos conheciam o plano, logo Judas tinha por missão ir buscar os guardas, em cumplicidade com Cristo e com permissão de Deus, porque nada é feito sem o seu conhecimento e esta era a sua vontade. É o próprio Jesus que o diz. Quem decidiu a condenação, a punição e a morte de Jesus Cristo foi o poder religioso e o poder temporal. Os homens podiam ter feito outro julgamento se não fossem os seus interesses mesquinhos, podiam ter optado pela tolerância e pelo respeito pela liberdade de opinião. E a doutrina de Cristo teria logo vencido em paz. (...) - Para que foi a morte de Cristo? Que utilidade lhe acha? - A morte de Jesus é a metáfora perfeita de que cabe aos homens o livre arbítrio de escolher o caminho que querem percorrer. Sem Judas Iscariotes, a ressurreição não teria acontecido, porque Jesus não teria sido julgado e morto. A morte de Jesus não foi para nossa salvação, foi a nossa condenação. (...) São Judas Iscariotes é o mais abnegado dos santos cristãos, porque o seu martírio foi e é o de ser o maldito. O mais nobre e dedicado de todos os discípulos foi condenado a ser o mais esquecido e o menos bem querido. (...) À imagem de Hirão, ele aceitou aguardar o tempo necessário e exacto para que a verdade seja revelada e, como prova de ser um espírito mais elevado que os restantes, aceitou o simbolismo da sua morte interior para o mundo em respeito à lei do devir interior, progredindo espiritualmente. (...) - Sabe que Hirão foi artesão no palácio de Salomão e no Templo de Jerusalém? - Sei e sei também que é considerado pela Maçonaria como seu mestre fundador. Mas não tem nada a ver com o que estava a dizer. É o simbolismo do mito que importa, porque, tal como Hirão, Judas representa o Saber, a Tolerância e o Desprendimento Generoso e foi condenado pela Hipocrisia Fanatizante, pela Ignorância e pela Ganância, ou seja, os doutores do Templo, Herodes e Pilatos. (...) " in Ferreira, Fátima Pinto, São Judas Iscariotes 2006, Edições Cosmos, Lisboa