terça-feira

Governo acordou tarde para problema da dívida soberana” - entrevista a António Vitorino -

08/11/10 Económico
António Vitorino defende a convergência das forças políticas numa plataforma comum.
Estava sol e Lisboa brilhava olhada de um oitavo andar do Marquês de Pombal. Lá dentro, bem disposto e disponível, António Vitorino acolhe a equipa do Económico. Não foi fácil tê-lo ali, a sua agenda é carregada, viaja muito, não quer - nem precisa - de entrevistas, dispensa palcos e luzes. Apesar de loquaz, percebi que mediu palavras e pesou afirmações mas não teve importância: a inteligência e a lucidez foram mais fortes que a prudência. É pena não poder dar explicações de política a Sócrates e a Passos (e ele quer absolutamente que PS e PSD se entendam!)
José Sócrates não tem feito senão branquear dificuldades... Há uma fuga para a frente, um estado de negação, que apaga qualquer dificuldade...
O Governo despertou tardiamente para a dimensão do problema da dívida soberana. O que sucedeu em Maio, com a crise grega, ultrapassou não apenas o que governantes em situação comparável - gregos, portugueses, irlandeses e espanhóis - podiam ter antecipado, mas também aquilo que eram os cálculos de países como a Alemanha, a França ou o Reino Unido. Nesse sentido, também não vamos culpar exclusivamente o primeiro-ministro...
Mas grande parte do país vai: em qualquer desses países que mencionou os governos reagiram muito antes. O primeiro-ministro espanhol, por exemplo, tomou medidas duríssimas mais cedo remodelando além disso o governo, como quem arregaça as mangas. Aqui, pelo contrário, em recentes debates e entrevistas, o primeiro-ministro mantém-se igual a si mesmo...
Concedo e já disse que em Maio deveríamos ter agido de outra maneira e de forma mais ampla. Mas há uma diferença entre a Espanha e Portugal e que muito me impressiona. A sociedade espanhola está muito causticada, mas se falar com espanhóis nota ânimo e vontade de lutar para pôr termo à crise. Em Portugal o acabrunhamento é tal que se não houver alguém a puxar para cima...
Alguém já sem crédito para "puxar para cima"?
Não nego que haja problemas de credibilidade política...
...nem de contestação surda no Rato, na bancada parlamentar, no Conselho de Ministros?
Mas repare: se não for o Governo e os responsáveis políticos a terem algum ânimo, não encontramos - com uma ou duas excepções - na sociedade civil quem faça esse discurso.
Insisto: tudo não se tornaria mais salubre com o afastamento de José Sócrates da chefia do Estado? Aí sim, talvez houvesse esse ânimo que a execução do OE vai reclamar...
Os portugueses têm uma tradição cultural que os leva a resolver os problemas de duas formas: ou há um D. Sebastião ou se escolhe um bode expiatório que esteja à mão. Esquecendo que hoje a democracia e as eleições são muito a escolha personalizada de um primeiro-ministro e a escolha de Santana Lopes é o exemplo vivo de como isso faz a diferença quando se trata de discutir a legitimidade do poder político. Quando me evoca a frescura e o ânimo de outro primeiro-ministro, isso corresponderia a logo se ouvir o argumento "o que é que o senhor está para aí a dizer se não ganhou as eleições?"... Não fugiríamos desse problema. Se há alguma questão de estabilidade governativa ela só poderá ser dirimida através de eleições. Mas neste momento o país tem é de encontrar a capacidade de se unir e convergir numa plataforma comum para responder aos problemas. Se eles viessem a produzir todos os seus efeitos, ninguém ficaria incólume!
Ainda é possível união e convergência com José Sócrates na chefia do Governo?
Em vez de futurologia o que é preciso é resolver a emergência da situação das contas públicas, que é apenas parte do problema. Vamos ter dois ou três anos de ajustamento doloroso para voltar a colocar o défice sob controlo e iniciar a trajectória da diminuição da dívida pública. E não chega. Ao mesmo tempo, é preciso que sejamos capazes de convergir numa estratégia de médio prazo que responda às três grandes questões com que o país está confrontado: competitividade das empresas, ou seja, produtividade; criação de emprego e sem isto não há obviamente coesão social; crescimento económico baseado nas exportações. Eis os três objectivos e ninguém, do PS ou do PSD, dirá o contrário. Até passarem à fase seguinte: como concretizar isto...
E onde está o resto do suporte político? Há a sensação de ser necessário agir politicamente já. Como e com quem?
O Governo vai ter de dialogar e dar passos para estabelecer pontes com o maior partido da oposição. O país tem essa característica muito curiosa; um quadro parlamentar onde 20 por cento do Parlamento é imprestável do ponto de vista governativo. O PC e o BE não têm préstimo nem relevância governativa, as suas posturas políticas tornam-nos marginais em relação a qualquer solução de governo. Isso obriga o PS a ter o PSD como único interlocutor para uma estratégia deste género.
Só se evoca PS e PSD. Não há um lado perverso e quase adiposo nisso?
Ora aí está um exemplo da nossa esquizofrenia política. Queixamo-nos do ‘centrão', clamamos que PS e PSD não se distinguem suficientemente um do outro - agora até se distinguem mais que no passado! - e quando estamos numa situação de crise, aqui d'el rei que não se conseguem entender. Vejam lá se clarificam as ideias: se estão contra o ‘centrão' não digam depois que a democracia deve assentar em acordos amplos...
Defende-os?
Disse sempre que a origem desta democracia devia ser consensual, são precisos consensos que extravasem quem está circunstancialmente no exercício do poder. Ou alguém acha que as reformas difíceis que têm de ser feitas poderiam sê-lo por exemplo com um Governo PSD/CDS tendo na oposição o PS e os demais partidos? O que temos pela frente não pede acordos pontuais, antes exige uma convergência a médio prazo, independentemente de quem esteja no exercício do poder, e é essa a virtude da alternância democrática! Nesse aspecto, desaprendemos. Essa convergência já foi mais sólida no passado. Se olharmos para Espanha, onde a política é muito crispada, repararemos que os anos de grande progresso foram justamente os que assentaram no pacto da Moncloa, o acordo político entre o PSOE/Partido Popular, as centrais patronais e as centrais sindicais. Mal esse consenso abrandou, a Espanha enfraqueceu.
Como olha para esta nova direcção do PSD?
Houve uma mudança de geração. Se é boa ou má há que esperar provas, embora ache que ela foi hesitante na gestão dos últimos dois meses da vida pública. Primeiro com a revisão constitucional que me merece críticas e desacordos profundos face a algumas opções e revela falta de memória histórica do que é a construção do sistema político e institucional português; e hesita-se entre, de um lado, a pressão interna no PSD, partido de poder para voltar ao poder e, do outro, o tempo que esta nova direcção precisa para preparar uma alternativa consistente. De momento não a vejo, mas o PSD tem a obrigação de a construir. Vindo a debate com propostas concretas. Temos a volúpia da retórica e aversão aos argumentos. Não é nada saudável.
Obs: Uma eficiente entrevista de AV, pena é que o poder em funções, algo obsecado com as suas próprias receitas da governação, não tenha ouvido vozes mais credíveis, ainda que políticamente alinhadas, a fim de extrair delas leituras alternativas e mais construtivas relativamente ao desenho das políticas públicas e ao futuro da economia nacional e da esperança dos portugueses, que hoje estão num buraco fundo do qual é difícil de sair.
Até parece que estamos entre dois abismos: do poço fitando o céu!!

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