Cimeira histórica com sombras no horizonte. Recuperação de Phil Collins
Ratificação do tratado de redução de armamentos nos Estados Unidos ameaça perturbar a reconciliação histórica com a Rússia. Luís Naves, DN
Os líderes usaram a palavra "histórico" para definir o resultado da Cimeira da NATO, a ponto de Dmitri Medvedev ter notado que todos os seus colegas tinham referido a palavra (José Sócrates, Anders Fogh Rasmussen, Barack Obama). O Presidente russo referiu a coincidência e concordou de imediato. Foi na capital portuguesa que a NATO enterrou ontem a Guerra Fria, embora nem tudo tenha mudado: os êxitos da Cimeira de Lisboa estão sob a ameaça da polémica americana. Isso foi visível na conferência de imprensa final de Obama, onde as perguntas dos jornalistas americanos se dirigiram ao mesmo tópico: o possível adiamento da ratificação do Tratado START de controlo de armamentos assinado com a Rússia.
"É um interesse crítico da segurança nacional", sublinhou Obama, mais a falar para a audiência doméstica do que para o mundo. O Presidente lamentou o partidarismo dos republicanos que tentam adiar a ratificação para o próximo Congresso, que lhe será hostil. "Ninguém vai ganhar votos em 2012 com esta questão", afirmou.
Nas duas horas anteriores a este lamento, Obama estivera junto dos outros líderes da NATO a discutir com os russos as modalidades de uma parceria sem precedentes entre os dois ex-inimigos. Rússia e NATO aceitaram cooperar num escudo de defesa antimíssil na Europa e Moscovo vai cooperar com a aliança no Afeganistão, facilitando a passagem de transportes. Mas o START paira como uma sombra: Medvedev disse que o processo de ratificação pelos americanos será imitado pela Rússia. E se os americanos não ratificarem o acordo? A esta pergunta, Medvedev fez uma pausa e disse: "Seria uma pena se tal acontecesse. O trabalho de muitas pessoas teria sido em vão. Espero que os republicanos tenham uma atitude responsável."
Sem o START, o processo iniciado em Lisboa ficará comprometido. A Rússia vai estudar a cooperação no escudo antimíssil europeu e participará "numa base de igualdade. Ou somos todos responsáveis ou não participamos de todo", disse Medvedev, ao elogiar o novo conceito estratégico da NATO.
Foi de acordo com este conceito que se definiram as novas missões. A Rússia já não é a ameaça e a aliança lutará contra o terrorismo e a proliferação nuclear. Em tempo de limitações orçamentais, haverá uma reforma dos comandos e agências, com redução da mão-de-obra em 35%, um total de cinco mil lugares na estrutura.
Estas ambições podem ter consequências a prazo, mas a Aliança enfrenta um conflito duro no Afeganistão e uma das discussões mais difíceis foi a parceria de longo prazo NATO-Afeganistão, que visa criar condições para transferir a segurança para as forças afegãs, que no final de 2011 terão 300 mil homens. Mas falta treino. Falta também convencer os talibãs a depor as armas. A guerra já dura há nove anos e muitos europeus mostram sinais de cansaço.
Obs: Estas notas exprimem bem como os adversários de ontem podem ser os aliados de amanhã, na linha da melhor realpolitik ensinada por Talleyrand e Kissinger, e antes deles por Nicolau Maquiavel. De resto, esta regra política também se aplica ao campo das relações empresariais e interpessoais. Mas o que saliento aqui é um facto ainda mais sintomático, senão mesmo caricato, mas que revela o estádio em que os sistemas políticos se encontram actualmente. É o próprio Putin, perdão, Dmitri Medvedev, quem avança com a nota de apoio político a Obama para a ratificação do START, ante a perda de maioria na CR - que isolou mais Obama em matéria de apoio parlamentar. Onde é que já se viu um Presidente russo apelar às hostes republicanas para que não vetem aquele importante acordo de redução de armas?! De facto, a história dá com cada cambalhota que temos de a vivenciar, doutro modo jamais acreditaríamos nessas declarações públicas. Quem como eu, e os da minha geração, estudou os acontecimentos da Guerra Fria, estudadas pelas páginas sábias do maior mestre das Relações Internacionais do séc. XX, Raymond Aron, no seu Paix et Guerre entre les Nations, fica literalmente banzado com este apoio declarado de Medvedev a Obama em plena Cimeira da NATO em Lisboa. É como se Obama contasse com mais um voto de luxo pelo democratas contra os republicanos no Congresso norte-americano. Cimeira que foi histórica, malgré toda a semântica em torno deste [vazio] conceito estratégico emergente, que apenas significa mais multilateralismo e mais parcerias, ante a crise financeira dos Estados que os obrigam a reduzir drásticamente os respectivos budjets para a segurança & defesa. Como referi no post infra, entre Obama e Dmitri Medvedev não há só uma relação de amigos e de parceiros, qualquer dia declaram-se amantes e assumem publicamente essa relação... Nesse dia, cai o "carmo e a trindade" no Politburo e no Capitólio..., ou talvez não!! O mundo mudou, mas, sejamos sérios, não foi na Cimeira de Lisboa. Salvo para os lisboetas que viam todas as artérias da cidade cortadas transformando a capital numa espécie de cadeira do dentista, na qual não nos podemos mexer, mas da qual todos queremos sair o mais rapidamente possível.
PS: Se esse romance criar raízes, dedicados aqui Phil Collins para Obama e Medvedev - para musicar esses afectos.
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