segunda-feira

A importância do legado de Woody Allen entre nós

A importância de Woody Allen hoje.
Como sempre, podemos ver esse reconhecimento na dupla condição de observador e observado em que o próprio Woody Allen se coloca. Fazendo com que, no plano da psicologia e da filosofia ocorra um enriquecimento de M. Foucault e de Frederico Nietzsche.
Em O Grande Conquistador Allen é um crítico de cinema. O seu alter-ego é Humphrey Bogart, que sai do écran e entra na vida de Allen – também para o observar. O voyeurismo parece, pois, estar por todo o lado, acabando por o afectar. W. Allen sente necessidade de ser libertar dele. E fá-lo mediante uma ética de auto-modelação.
O jazz pode ter sido uma dessas escapatórias hiper-criativas...
No final do filme, Allen conta ao seu melhor amigo que que tinha uma relação extra-conjugal, sendo que a cena tem lugar numa pista de descolagem de um aeroporto, imitando o final do mítico Casablanca.
Só que neste caso a abdicação é dúplice, pois para além de abdicar da mulher, Allan está também a dispensar o seu alter-ego, H. Bogart.
Allen fala com Bogart acerca de si próprio, explicando a si mesmo que é baixote e feio, embora, de alguma forma, consiga fazer nascer o seu próprio estilo por entre acidentes, et pour cause.
E assim W. Allen se desliga dos espelhos que sempre o afectaram, demonstrando ao mundo que o problema dos feios e dos complexados é, acima de tudo, uma questão estética, filosófica e de natureza psicológica que pode ser sempre superada.
De resto, esta posição é muito convergente com a de Michel Foucault, embora remonte a F. Nietzsche quando na sua Gaia Ciência, afirma:
Uma coisa é necessária: Dar estilo ao seu carácter, uma arte deveras importante que raramente se encontra! Para a exercer é necessário que o nosso olhar possa abranger tudo o que há de forças e de fraquezas na nossa natureza, e que as adaptemos em seguida a um plano concebido artístico, até que cada um apareça na sua razão e na sua beleza e que as próprias fraquezas seduzam olhos. Aqui ter-se-á acrescentado uma grande massa de segunda natureza; ali, ter-se-á retirado um pedaço de natureza original, em ambos os casos, à custa de um paciente exercício e de um trabalho quotidiano. (...)
Ou seja, W. Allen dá-nos imensas lições, a primeira das quais é a de que soube fundir a sua vida com a arte. Nesse sentido, deixou de se olhar através do seu alter-ego, Bogart, mas através dele próprio, passando Bogart a ser-lhe exterior.
W. Allen - deixou de estar de olho em ti, miúdo, através do seu alter-ego. Sendo certo que a sua congénita paranóia desaparece quando ele se aceita a si próprio tal como é, e deixa de buscar um modelo ideal que lhe sirva de referência no seu mundo exterior. Allen passou a ter uma ética individualizada, a única que é necessária, na linha de Nietzsche – que ensinava que era necessário conferir um estilo à personagem pós-moderna que hoje, cada um de nós, mais ou menos, personificamos nas nossas vidas.
Mas o voyeurismo, o estilo, as paranóias, as éticas, a vontade de poder são, precisamente, as variáveis que hoje definem o curso da nossa vida pública: com juízes em conflito entre si na perseguição a agentes políticos; com empresários em relações promíscuas com agentes políticos; os media perseguindo o poder, porque o poder também os persegue.
Ou seja, Portugal hoje é um reflexo íntimo do universo de preocupações mentais, estéticas, filosóficas, psicológicas, políticas, cinemáticas e artísticas que tem ocupado boa parte da vida deste ser sui generis artista e rico de faculdades que, dos seus complexos soube transformar-se num homem de excepção.
O problema é que nós, portugueses, ainda que tentemos, só muito dificilmente conseguiremos alcançar a liberdade ao viver conscientemente sob esse veículo artístico e quase divino do cinema em que Woody Allen tem navegado, moldando-se segundo a sua cosmovisão, superando as suas próprias frustrações e traumas e buscando nos seus personagens a receita para a sua própria salvação.
Confesso que vejo com alguma dificuldade que os portugueses se libertem do peso que carregam seguindo os mesmos métodos, apesar deste país recorrer cada vez mais ao método do psicodrama para ir vivendo...
Sem jazz, por enquanto...

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