Escrutínio parlamentar - por António Vitorino -
Escrutínio parlamentar, in DN
Esta semana deu-se mais um passo na tormentosa caminhada de entrada em vigor do Tratado de Lisboa. O Tribunal Constitucional alemão considerou que o Tratado era compatível com a Lei Fundamental de Bona desde que a Alemanha alterasse a sua legislação interna que regula o acompanhamento do processo de integração europeia por parte das duas Câmaras do Parlamento alemão.
Esta decisão do Tribunal de Karlsruhe foi saudada pelos adversários do Tratado, embora paradoxalmente ela seja a melhor homenagem ao próprio Tratado!
Com efeito, durante muito tempo se considerou que eram insuficientes os mecanismos institucionais europeus que viabilizassem a participação dos parlamentos nacionais nos processos decisórios da União. Desde o Tratado de Maastricht que este tema esteve sempre no centro do debate na Alemanha, muito impulsionado pelos estados federados (os Lander) que consideravam que a atribuição de competências à União Europeia acabava por subverter os equilíbrios de poder internos ao próprio modelo federal alemão.
De facto, sempre que se tratava de assumir, a nível europeu, matérias que recaíam no âmbito de competências dos Estados federados alemães, estas matérias passavam a ter como interlocutor alemão, nos Conselhos de Ministros europeus, apenas o Governo federal de Berlim, o qual ganhava, assim, no quadro europeu um espaço de intervenção de que não desfrutava antes no estrito plano nacional.
Ao longo destes anos o debate centrou-se, pois, em saber como poderiam os Lander não ser desapossados da sua capacidade de intervenção nessas matérias e, em paralelo, como poderiam evitar um processo "deslizante" de reforço de competências europeias sem que sobre ele tivessem uma palavra decisiva a dizer.
O Tratado de Lisboa procurou responder a esta "nova questão alemã" na Europa. Por um lado, clarificando as categorias de competências da União e o método da sua consagração a nível europeu e da sua possível devolução para o plano nacional. E, por outro, reforçando os poderes de controlo dos parlamentos nacionais em defesa do respeito do princípio da subsidiariedade, através de um mecanismo de intervenção das câmaras dos parlamentos nacionais na apreciação das propostas de iniciativas apresentadas pela Comissão Europeia.
Dadas as diferenças entre os Estados membros da União no tocante à organização dos respectivos parlamentos nacionais (uns com uma única câmara, como é o caso português, outros com duas câmaras, como na Alemanha, onde a segunda câmara - o Bundestag - representa exactamente os interesses dos vários estados federados), o Tratado de Lisboa deixou em larga medida às decisões nacionais a organização da forma de participação dessas câmaras parlamentares no processo de decisão europeu.
Assim, no uso da faculdade conferida pelo Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional alemão veio agora dizer que a legislação interna alemã tem de ser adaptada a esta nova faculdade reconhecida pela União Europeia e que a densificação desse poder de intervenção deveria ocorrer antes de dar por concluído o processo de ratificação do Tratado pela Alemanha.
Por esta razão, os principais partidos políticos alemães já marcaram uma sessão extraordinária do parlamento para o começo de Agosto, tendo em vista a aprovação de tal lei de participação no processo decisório europeu, isto a tempo de concluir o processo de ratificação antes do referendo previsto na Irlanda para o mês de Outubro próximo.
Trata-se sem dúvida de um importante alerta a todos os parlamentos nacionais quanto aos poderes acrescidos que lhes são conferidos pelo Tratado de Lisboa. Será por isso importante registar que, entre nós, existe, desde 2006, uma nova lei sobre a matéria e que, no período entre 2006 e 2008, a Assembleia da República ficou entre os oito parlamentos nacionais mais activos em matéria de escrutínio das iniciativas legislativas e não legislativas da Comissão (figurando mesmo à frente das câmaras com maior tradição na matéria, a da Suécia e a da Dinamarca).
Este salto qualitativo dado pelo Parlamento português terá agora de ser seguido de um acrescido esforço de visibilidade deste labor, muito em especial quando entrar em vigor o Tratado de Lisboa, assim tornando os temas europeus mais próximos dos cidadãos portugueses. Obs: Divulgue-se em nome do interesse europeu.
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