quarta-feira

Sophia de Mello Breyner Andresen (evocação)

Sophia de Mello Breyner Andresen
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.
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A hora da partida soa quando Escurece o jardim e o vento passa, Estala o chão e as portas batem, quando A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando as árvores parecem inspiradas Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos Me é estranha e longínqua a minha face E de mim se desprende a minha vida.
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Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que eu quero ver.
Peço-Te que sejas o presente. Peço-Te que inundes tudo. E que o teu reino antes do tempo venha. E se derrame sobre a Terra Em primavera feroz pricipitado.
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Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição Onde tudo nos quebra e emudece Onde tudo nos mente e nos separa
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Que nenhuma estrela queime o teu perfil Que nenhum deus se lembre do teu nome Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti criarei um dia puro Livre como o vento e repetido Como o florir das ondas ordenadas.
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Bebido o luar, ébrios de horizontes, Julgamos que viver era abraçar O rumor dos pinhais, o azul dos montes E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitários somos e passamos, Não são nossos os frutos nem as flores, O céu e o mar apagam-se exteriores E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Por que jardins que nós não colheremos, Límpidos nas auroras a nascer, Por que o céu e o mar se não seremos Nunca os deuses capazes de os viver.