sexta-feira

Jogar pelo seguro - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso.
JOGAR PELO SEGURO
António Vitorino
Jurista
Por entre o ruído provocado pelas faltas dos deputados à sessão parlamentar de sexta-feira passada, quase passou despercebido o colóquio promovido pelo grupo parlamentar do PS em torno de um estudo académico sobre possíveis alterações a introduzir na lei eleitoral para a Assembleia da República.
Com efeito, a reforma da lei eleitoral é um daqueles temas recorrentes, designadamente desde que a revisão constitucional de 1997 abriu a possibilidade de, por via da legislação ordinária, se introduzissem mecanismos que visassem uma mais directa ligação dos eleitos aos eleitores e consequentemente uma sua maior responsabilização.
Sucessivamente reiterada como intenção nos programas eleitorais do PS e do PSD, essa alteração eleitoral depende de uma maioria de dois terços na Assembleia da República.
Pelo tom do debate naquele colóquio, a fazer fé nos parcos relatos vindos na imprensa, ainda não será nesta Legislatura que tal objectivo será atingido.
Desde 1991 que defendo a introdução de mecanismos de personalização do voto, isto é, soluções que confiram aos eleitores um poder de decisão que vá mais além do que a simples escolha de uma lista fechada de candidatos apresentada pelos partidos políticos.
O estudo académico apresentado parece apontar para o chamado "voto preferencial", isto é, para a possibilidade de o eleitor, perante uma lista partidária da sua escolha, poder alterar a ordem dos candidatos, manifestando assim uma preferência individualizada, dessa forma determinando quem será eleito dentro da quota que couber a esse partido, determinada pela aplicação do sistema de representação proporcional.
O modelo respeita, à partida, os cânones constitucionais, embora na minha opinião não ofereça grande espaço para melhoria da representação em termos práticos. De facto, nos casos onde existe "voto preferencial", o que a prática tem revelado é que a maioria dos eleitores acaba por não fazer uso da faculdade que lhe é conferida de reordenar a lista partidária da sua escolha, de modo que o voto que exprime ratifica a ordem dos candidatos tal como foi definida pelo próprio partido.
Continuo a pensar que a melhor forma de personalização do voto passa pela criação de círculos uninominais de candidatura, compatibilizando-os com círculos proporcionais de apuramento, com base nos quais se faria a distribuição dos mandatos pelos partidos, desta forma reconhecendo a prevalência do princípio da representação proporcional como determina a Constituição. Reconheço, contudo, que o desenho de um tal modelo não seria isento de alguma complexidade e que tal exigiria um esforço de explicação do novo sistema aos eleitores que poderia tornar mais imprevisível o seu resultado final.
E é aqui que reside o problema. Todas as propostas de alteração da lei eleitoral até hoje apresentadas (inclusivamente uma que subscrevi em 1997) esforçaram-se por demonstrar que da sua aplicação não resultaria nenhuma alteração de fundo quanto às condições de acesso dos partidos ao hemiciclo da São Bento. Em todos os casos se pretendeu demonstrar que as máquinas partidárias podiam arriscar a mudança na medida em que o "coração do sistema", ou seja, a proporcionalidade não seria afectada pelas inovações. O argumento "sedutor" assim apresentado contava com o facto de muito previsivelmente as direcções partidárias tenderem a ler mais as propostas de alteração com a máquina de calcular ao lado do que com qualquer edição de Tocqueville.
Ora tal demonstração pode ser feita num colóquio ou num estudo académico, mas como o prova o nosso actual sistema eleitoral, os eleitores vão progressivamente aprendendo a "usar" o sistema eleitoral em função dos seus interesses, apropriam-se dele ao longo do tempo e podem de facto, a prazo, vir a causar algumas surpresas aos agentes políticos. Esta mera possibilidade leva os partidos a preferirem "jogar pelo seguro" e a deixarem as coisas como estão.
Entretanto podem sempre entreter-se a discutir se deve ou não haver multas para os faltosos, claro!
Obs: Já não seria mau perguntar ao eleitor de Setúbal, Aveiro, Braga, Santarém ou Lisboa saber que é ou são os deputados que representam esses círculos... Já seriam um bom início de (maior) responsabilização.