segunda-feira

Privatizar o Estado - por Francisco Sarsfield Cabral -

Privatizar o Estado (in Público)
Há três semanas, um tiroteio em Bagdade matou quinze civis iraquianos. O caso suscitou um grave conflito entre o governo do Iraque e Washington, porque nele esteve envolvida uma das muitas empresas privadas militares que operam no Iraque, a Blackwater. O assunto é agora tema de aceso debate político nos Estados Unidos.
Entre as várias desgraças trazidas pela invasão do Iraque conta-se a proliferação de autênticos exércitos privados. Ela foi incentivada pela desastrosa insistência do ex-Secretário da Defesa Rumsfeld em enviar para ali um número insuficiente de soldados regulares, contra a opinião de muitos generais.
Estão no Iraque 168 mil soldados americanos e 180 mil “civis contratados", pertencentes a mais de vinte empresas privadas ditas de segurança. Um quarto desses civis são, na prática, combatentes. Só que não estão sujeitos aos códigos militares nem às leis iraquianas, actuando num vazio legal – ou seja, em plena impunidade. Contra a opinião da Casa Branca, na quinta-feira a Câmara dos Representantes aprovou, por grande maioria, uma lei colocando as “empresas militares” sob a alçada da lei penal americana.
O recurso a mercenários não acontece apenas no Iraque. Trata-se de um negócio em franco desenvolvimento internacional. Em parte porque a crescente sofisticação das armas e equipamentos militares requer a colaboração de civis tecnologicamente preparados. Mas o recrutamento de mercenários faz-se à escala mundial, com base em Washington e Londres, também para missões que têm pouco de tecnológico e envolvem ex-soldados dispostos a combater por dinheiro. Há “militares privados” a actuar em países como a Serra Leoa, Guiné Equatorial, Ilhas Fiji, Nepal, Bangladesh, Bósnia, Ucrânia, Rússia, Afeganistão...
Os mercenários são tão antigos como a guerra. Há uns séculos tiveram grande peso em muitas batalhas. Ou lembremos o Congo nos anos 60. Também não é novidade a contratação de privados para apoio de exércitos regulares. Nova é a escala que a privatização das funções militares assume hoje, incluindo as funções de combate. A Blackwater, por exemplo, possui nos EUA uma vasta base de treino, onde operam aviões, helicópteros, etc.
Mas serão os exércitos profissionais regulares muito diferentes destas empresas privadas? Também eles recrutam gente que aceita combater e arriscar a vida por dinheiro. O serviço militar obrigatório (SMO) surgiu na Prússia no séc. XVIII, mas desenvolveu-se sobretudo com a entrada em cena da figura (hoje tão falada...) do “cidadão”, na Revolução Francesa. Ora o SMO parece ter passado à História. Assim se esbatem perigosamente as fronteiras entre o público e o privado.
Uma conquista da modernidade foi considerar que o Estado detinha o monopólio da violência legítima. Nesta era pós-moderna tal monopólio é bem menos rigoroso, como se vê não apenas nos “militares privados” como nas empresas de segurança que se multiplicaram como cogumelos, suprindo incapacidades do Estado. E em vários países já funcionam prisões geridas por privados, com funções não apenas de apoio logístico (alimentação, limpeza, etc.) mas implicando o uso da força enquanto guardas prisionais.
Confesso que esta evolução não me agrada. O exercício da força por privados, ainda que com autorização e por delegação do Estado (o que nem sempre acontece), retira legitimidade à coacção imposta às pessoas. Que, assim, se sentem autorizadas a reagir, porventura também pela força. Está-se a fomentar a violência, que – em parte por isso - tem aumentado a ritmo alarmante nas sociedades actuais.
A privatização do uso da força (no fundo, a privatização do Estado tal como o conhecemos) não é exclusivamente uma bandeira neo-liberal. Ela não parece incomodar aqueles que, na praça pública, mais berram contra a liberalização económica. Nem os que se opõem a que o Estado transfira para o sector privado operações para que este tem competência – no ensino ou na saúde, nomeadamente.
É o que acontece em Portugal, onde o Estado falha nas suas funções essenciais: assegurar a justiça, a segurança e a defesa. Ao mesmo tempo que o actual Governo socialista está possuído de fúria regulamentadora, pondo o Estado a interferir em tudo e mais alguma coisa.
As prioridades estão trocadas. Ou serei eu que não me adapto à pós-modernidade?
Francisco Sarsfield Cabral Jornalista