sexta-feira

Princípio do fim - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso.
PRINCÍPIO O FIM? António Vitorino
jurista
Entramos na chamada silly season. Tempo de férias em que, à míngua de notícias, os factos mais terríveis e desconcertantes ganham especial destaque e projecção. À cabeça figuram os acidentes naturais, as catástrofes, os afogamentos nos rios e barragens, os conflitos passionais.
A modorra da estação política só é normalmente quebrada pela festa do Chão da Lagoa, organizada pelo PSD/Madeira. Ano após ano o principal protagonista do evento, o dr. Alberto João Jardim, lá profere uma série de afirmações entre o ameaçador e o insultuoso, fazendo passar nas entrelinhas o sentido da sua mensagem política. Por via de regra seguem-se os comentários centrados na apreciação daquele estilo inimitável e, quando presente, lá se especula sobre o embaraço mais ou menos visível do líder nacional do PSD na ocasião.
Este ano, mais uma vez, o guião não desiludiu. Tudo se passou conforme o previsto, talvez com menos repercussão mediática que em anos anteriores porque, de alguma forma, generaliza-se um sentimento de cansaço com este tipo de exibições.
Contudo, este ano, o Chão da Lagoa teve um sabor especial, ao realizar-se em plena querela sobre a lei do aborto, que o Governo Regional pretende não aplicar até haver decisão do Tribunal Constitucional sobre a sua constitucionalidade.
Já muito se escreveu sobre a matéria e pelo meu lado pouco tenho a acrescentar sobre o fundo da questão. As leis da República atinentes a direitos, liberdades e garantias não são susceptíveis de deferimento de aplicação em parte do território nacional por qualquer decisão das autoridades regionais. Sendo leis que dão densidade ao conceito de cidadania portuguesa, a sua aplicação uniforme em todo o território nacional é um pressuposto não apenas do princípio da legalidade característico do Estado de direito democrático como do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
A subversão do alcance e da finalidade de uma fiscalização sucessiva da constitucionalidade não pode ser consentida por quem tem a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição. Os tribunais terão decerto uma palavra a dizer, mas não é atrás dessa palavra que se pode esconder o Presidente da República, numa primeira declaração muito infeliz que o obrigou de seguida a "emendar a mão" e a recomendar diálogo entre os órgãos de soberania e os da região para ultrapassar este impasse.
Claro que esta atitude das autoridades regionais surge, em larga medida, porque se trata da lei do aborto. Mas para além do tema e das ideias próprias do Governo Regional contrárias à decisão tomada no referendo e vertida em lei pela Assembleia da República, coloca-se uma questão de fundo sobre o sentido da autonomia regional.
Pessoalmente sou dos que defendem que a autonomia regional deveria ser bastante ampla num vasto conjunto de matérias. Por diversas vezes o defendi em sede de anteriores revisões constitucionais. E entendo que a regionalização dos serviços de saúde faz todo o sentido e visa finalidades que se justificam à luz da razão de ser da autonomia político-administrativa que a Constituição reconhece e consagra.
Mas a regionalização de serviços públicos universais é uma moeda com duas faces. Confere prerrogativas às regiões mas também as faz incorrer em responsabilidades. A integração de direitos de cidadania nas obrigações de prestação de cuidados de saúde regionalizados constitui uma responsabilidade de que não se podem eximir aqueles que defendem um entendimento amplo dessa mesma autonomia. Logo, para além do que é a discussão sobre o impacto financeiro no orçamento regional da lei do aborto, está em causa uma questão de princípio quanto ao fundamento e legitimidade das próprias autonomias regionais.
Ora o dr. Alberto João Jardim, depois da sua retumbante vitória eleitoral, havia dito que iria apostar tudo no novo ciclo da autonomia na negociação da próxima revisão constitucional quanto ao âmbito e alcance dessa própria autonomia. Esta atitude que acaba de tomar, mais do que uma querela com o Governo de Lisboa, constitui um precedente negativo para a prossecução da sua própria estratégia política futura.
Há quem diga que o princípio do fim começa quando nos derrotamos a nós próprios sem termos sequer consciência disso...
Obs: Publique-se pelo realismo e sentido de oportunidade.