domingo

TRANSCENDER E DINÂMICA RELIGIOSA - por Anselmo Borges -

TRANSCENDER E DINÂMICA RELIGIOSA (link) Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia
Na pedra tumular do filósofo Ernst Bloch, que se confessava ao mesmo tempo religioso e ateu, lê-se esta afirmação da sua autoria: Denken heisst überschreiten (pensar é ultrapassar, transcender).
O Homem é o ser do transcendimento. A sua vida não se passa na imediatidade do aqui e agora. No agora, está aberto ao não agora, ao passado e ao futuro, não apenas ao seu, mas ao passado e ao futuro pura e simplesmente. Como o aqui está aberto ao ali, a todos os lugares e a todo o espaço e ao para lá.
O Homem vive uma constituição paradoxal. Tem uma concretude máxima: é o resultado da fecundação de um óvulo determinado (este e não aquele) por um espermatozóide determinado (este e não aquele), nasceu neste lugar e não noutro, num tempo que é o seu, com um corpo único, uma estrutura, cor, olhos, cabelo, pés, mãos, rosto únicos; por outro lado, está aberto à totalidade do real e do possível.
Devido precisamente a esta abertura sem fim, é livre. Pode dizer sim, pode dizer não, é imprevisível. Transgride os limites. Não se deixa enjaular por normas, por leis, por instituições. Logo no início do Génesis, a Bíblia di-lo: o Homem é o ser da transgressão, do transcendimento e quer ser como Deus. "Não comereis da árvore da ciência do bem e do mal", era a ordem de Deus. Mas eles comeram.
Por isso, nunca está satisfeito (do latim satis-factum, feito suficientemente). Cria outras normas, outras leis, outras instituições. Como diz L. Boff, vive no real, mas acrescenta-lhe sempre algo, vivendo até mais do irreal, do que ainda não há, do que do real, do que já há. É o ser do sonho e da utopia, projectando ideais, que põem em causa a ordem presente e criam o novo e possibilidades outras em todos os domínios.
Só se realiza e vem a si, saindo para fora de si. É esquecendo-se de si que se encontra. Esta é a experiência do amor, aquele diferenciar entre dois, que, como escreveu Hegel, não são pura e simplesmente diferentes, de tal modo que precisamente o sentimento e a consciência da identidade de diferentes é que é o amor: "Eu não possuo a minha autoconsciência em mim, mas no outro; porém, este outro, o único no qual estou satisfeito e pacificado comigo, na medida em que também ele por sua vez está fora de si, não tem a sua autoconsciência senão em mim. Esta intuição, este sentimento, este saber da unidade: eis o que é o amor."
Outra das experiências maiores do esquecimento e encontro de si dá-se na música: ao mergulhar numa sinfonia, esquecemo-nos de nós - onde está o eu? - e, no entanto, é lá que somos verdadeiramente nós; é de tal modo exaltante que o tempo também fica anulado e era ali - onde exactamente? - que quereríamos ficar para sempre. A música é a experiência viva do meta-físico: lá estão vozes e instrumentos e o que resulta é o mistério da música, que nos remete para as origens e para o novo da reconciliação - aquela pátria onde nunca se esteve e, no entanto, a única onde se quereria viver sempre.
Mas, se, como escreveu Bloch, a música é a mais utópica das artes - remete para o indizível -, esse movimento de transcendimento está presente em todas elas, como na filosofia e em todas as actividades humanas. O Homem é constitutivamente um ser de desejo, mas precisamente assim: nunca sacia o seu desejo. Nunca tem o suficiente, nunca é suficientemente. Por mais que alcance, o realizado não satisfaz o que deseja. Há um abismo insuperável entre o que se deseja e o alcançado. Por isso, o Homem é um ser irremediavelmente inquieto e inevitavelmente perguntante.
Porque é abertura ilimitada à totalidade do ser, o fracasso do Homem provém de pensar que pode realizar-se num simples fragmento do real: o sexo, o dinheiro, o poder. Ao elevar o fragmento a totalidade, contradiz-se a si mesmo no seu ser verdadeiro.
É neste movimento de transcendimento sem limites que enraíza a dinâmica religiosa. Independentemente da resposta que lhe dê, o Homem não pode evitar
a pergunta por Deus.
Obs: Já aqui há dias defendemos que o governo deveria criar na sua orgânica o ministsério do Futuro - para pensar e fazer prospectiva nas políticas públicas sectoriais e globais, uma espécie de futuribles à portuguesa. Depois de ler esta reflexão do Pre. Anselmo Borges fiquei com a sensação que de par com aquele ministério do Futuro um outro ministério poderia ser criado: o ministério da Filosofia, e dá-se o caso curioso de Sócrates, que é engenheiro (e isto agora não é nenhuma piada à Mário Lino..) tem nome de filósofo. O problema parece residir na srª 5 de Outubro.. Porque espera Sócrates!?
Deixem a srª Socióloga regressar ao ISCTE - porque assim só molesta umas dezenas de alunos, e não os milhares de professores e alunos que transtorna na qualidade de titular da pasta da Educação. Uma escolha errática, por muito que isso custe ao prof. Mariano Gago...