sexta-feira

Negociação Difícil - por António Vitorino -

NEGOCIAÇÃO DIFÍCIL António Vitorino
jurista
Comecemos pelas boas notícias: na sequência das recentes jornadas parlamentares, o PSD anunciou a intenção de apresentar proximamente no Parlamento propostas de alteração das leis eleitorais para a Assembleia da República e para os órgãos autárquicos. Este anúncio revela sentido de oportunidade política e funda-se num argumento atendível: a reforma deve ocorrer com a suficiente antecedência em relação aos próximos actos eleitorais previstos para 2009, quer as eleições legislativas quer as autárquicas.
A imagem de marca das reformas que o PSD preconiza tem um sinal inequívoco: o reforço da componente maioritária do sistema eleitoral quer para o Parlamento quer para os órgãos autárquicos.
Neste último caso, o PSD recupera a sua proposta anterior, a de os executivos autárquicos serem eleitos por voto directo de modo a que a força ganhadora obtenha automaticamente a maioria absoluta dos mandatos independentemente da percentagem de votos que lhe tenha sido conferida pelos eleitores. Trata-se de uma opção que mantém a autonomia do executivo autárquico face à assembleia representativa, perante a qual, contudo, é responsável e de que depende nomeadamente em termos orçamentais, bem como salvaguarda a presença das forças de oposição na câmara municipal, só que à partida sempre em minoria por definição. No fundo, a proposta limita fortemente o sistema proporcional na composição da câmara, em benefício do argumento da estabilidade governativa da autarquia (embora mitigada pela subsistência da autonomia da assembleia municipal).
Já quanto à Assembleia da República, a imagem de marca da proposta do PSD assenta na ideia da redução do número de deputados, que passariam dos actuais 230 para 181. Tal redução justificar-se-ia em nome da eficácia do funcionamento do próprio Parlamento.
Como sublinhou Vital Moreira num artigo muito certeiro no Público, esta ideia da redução do número de deputados visa satisfazer o caldo de cultura antiparlamentar vigente entre nós, sabendo-se bem, contudo, que esse caldo de cultura nunca se saciará com reduções parcelares (mesmo que na ordem dos 20% como a que o PSD propõe).
Acresce que o argumento da eficácia do Parlamento com base numa composição mais restrita também é largamente falacioso. A operacionalidade quotidiana de um Parlamento, mesmo quando a sua composição é muito vasta (desde logo veja-se o caso do Parlamento Europeu com mais de 700 membros), depende, na prática, de um núcleo relativamente restrito de parlamentares (por volta dos 40 ou 50) que asseguram funções-chave como as lideranças dos grupos parlamentares, as presidências das Comissões e alguns nichos de especialidade centrados nas temáticas que mais relevantemente ocupam a agenda parlamentar.
Seria, pois, enganador pensar que a composição do Parlamento deve ser aferida em função das necessidades da sua operacionalidade interna, já que a segunda componente igualmente relevante de um Parlamento diz respeito à sua função de representação política da pluralidade da sociedade e respectivas correntes de pensamento político.
Reduzir o número de deputados significa comprimir a proporcionalidade e empobrecer a representação política, ao mesmo tempo que, em termos práticos, bem se poderia dizer que os primeiros "sacrificados" seriam provavelmente alguns dos deputados que asseguram a funcionalidade quotidiana do próprio Parlamento.
Dito isto, reconheça-se que a questão do número de deputados não pode nem deve ser vista como um dogma ou um dado intocável do sistema eleitoral. Sabe-se já que alguma alteração neste ponto será necessária para obter o acordo do PSD para a reforma eleitoral que exige o voto favorável de 2/3 dos deputados, ou seja, depende de um acordo entre o PS e o PSD.
O que importa agora é que se ponderem as consequências, no plano da representação política, de uma eventual redução do número total de deputados. Ora, se associarmos tal redução à proposta do PS de introdução de círculos uninominais de candidatura no quadro de um sistema de representação proporcional para efeitos de apuramento dos mandatos obtidos por cada partido (o que exigirá ou um círculo nacional ou a agregação dos actuais círculos distritais para esse efeito) chegaremos rapidamente à conclusão de que a redução do número de deputados terá uma margem estreita de viabilidade. É que a partir de certo ponto é a própria manutenção da proporcionalidade que pode estar em causa, contrastando com a imposição constitucional. A negociação não se apresenta, pois, nada fácil...
  • Obs: um bom artigo de natureza técnica e política visando a reforma do sistema vigente. E a Assembleia Municipal lá ficou...