Um lugar ao sol - por Miguel Sousa Tavares -
Um lugar ao sol
Expresso (link assi.)
Conheço alguns jornalistas assim, que avaliam os governos e o estado do país pela facilidade que têm ou não têm em almoçar com os ministros, o primeiro-ministro ou o Presidente
José António Saraiva, que foi director do Expresso durante vinte e dois anos, acaba de publicar o segundo volume das suas ‘Confissões’. Trata-se de um livro interessante, curioso muitas vezes, que se lê facilmente - como é próprio do que apela ao lado «voyeur» que existe em cada um de nós, em relação aos famosos e poderosos. Sempre fui fascinado por livros de memórias, embora não me imagine a escrever um. Mas prezo muito que os que se acham com um lugar na história e com qualquer coisa de verdadeiramente interessante para contar aos outros escrevam memórias. Alguns dos melhores livros que li na vida foram de memórias e muitas vezes lamento que quem o pudesse fazer com préstimo para os outros o não faça.
Porém, e como é óbvio, a decisão de publicar memórias é uma decisão pessoal que envolve um juízo de valor determinante do autor sobre si próprio: nada pior e mais ridículo do que as memórias de quem não tem vida que mereça ser contada. Inevitavelmente confrontado com esta questão primacial, José António Saraiva resolveu-a com aquela imensa auto-estima que o caracteriza e que é, sem dúvida, invejável: “Quem, em Portugal, poderia escrever um livro como este? Quem teria condições de liberdade (interior e exterior) para o fazer? Quem teria um material tão rico para pôr à disposição dos leitores?”. «Quod erat demonstrandum». E vamos a isso, então.
A primeira parte das ‘Confissões’, apesar das juras em contrário do autor, é apenas um deselegante ajuste de contas interno com o Expresso, a parte da redacção que não entendeu que ele era “uma lufada de ar fresco na imprensa portuguesa” e, em especial, com o seu sucessor à frente do jornal. São cem páginas de leitura às vezes constrangedora, em que, como ao longo dos tais vinte e dois anos, me interroguei se tamanha vaidade e presunção seriam possíveis naturalmente ou reflexo de uma mente perturbada. Lendo-o, a dúvida que me assalta é se, de facto, tudo o que aconteceu em Portugal nas últimas décadas fora já genialmente previsto pelo arqº Saraiva ou se tudo o que aconteceu, aconteceu apenas para vir de encontro às suas geniais previsões: por outras palavras, se ele consegue ler o futuro ou se consegue mesmo determinar o futuro. Sem dúvida que não se pode deixar de admirar a confiança de quem declarou em tempos que o seu próximo romance seria um «best-seller» mundial e o seguinte iria valer-lhe o Nobel da Literatura. Ou de quem, mais modestamente, garante ter “a perfeita consciência de que este é um livro muito polémico, que pode abalar a classe jornalística e o nosso pequeno universo político”.
O Grande Saraiva e o nosso pequeno universo político: este é, justamente, o tema da segunda parte das ‘Confissões’. A mais interessante e a que merece reflexão.
Durante vinte e dois anos, José António Saraiva foi (foi mesmo!) director do maior jornal português. Herdou um caso de sucesso e manteve-o à frente. Mas, como todos sabemos, a partir de certa altura o Expresso manteve-se à frente por inércia dos leitores e depois por exclusão de partes. Enquanto todos os outros tinham de inventar, inovar, foçar, transpirar, o Expresso - com a maior redacção de todos, um luxo de meios e a vantagem de ter um proprietário que era jornalista - limitou-se a dormir o sono dos satisfeitos. As pessoas compravam a ‘instituição’ com a mesma naturalidade e indiferença com que metiam gasolina no carro ou faziam compras no supermercado. E, se as vendas se mantinham ou subiam, não preocupava nada o arqº Saraiva que já ninguém lesse o jornal que comprava, que ninguém o citasse, e que, ao contrário do que ele garante, o país inteiro não passasse os fins-de-semana a comentar os seus brilhantes editoriais sobre a ‘Política à Portuguesa’. Foi preciso que aparecesse o ‘Independente’ e, mais tarde, o ‘Público’, para que a própria ‘instituição’ percebesse, depois dos seus leitores, que nem tudo ia tão bem quanto as aparências indiciavam.
Durante essas duas décadas, José António Saraiva não parou nunca de se ocupar da sua versão da ‘política à portuguesa’, naquele estilo mental e literário que ele define como único e que todos concordamos em achar, no mínimo, único. O saldo final desse prolongado e original exercício é o que se pode ler na segunda parte destas ‘Confissões’. E quando, a certa altura, ele me arrola na lista dos que o “atacaram regularmente sem razão aparente”, mostra não ter percebido nada. A razão é simples e não é aparente: o que fez ele do imenso poder que teve à frente do jornal mais importante e que poderia ter sido o mais influente do país? Que causas de interesse nacional defenderam o Expresso e o seu director durante vinte e dois anos? Que contributo deram para a melhoria da vida pública, para a responsabilização dos políticos, para a formação de uma opinião pública exigente e informada?
Em vão se procurará, em todos os editoriais de Saraiva, uma só ideia sobre o país, um só compromisso ético exigível na vida pública, um só projecto pensado seja para a educação, a cultura, o ambiente, a justiça, o ordenamento do território, a agricultura, o que quer que seja. Quem ler este livro perceberá porquê: porque a política, para ele, se resume a uma feira de mundaneidades. As suas memórias sobre a política, o balanço das suas duas décadas de observação da política portuguesa, são apenas um exaustivo registo sobre os incontáveis almoços e jantares que teve com todos os políticos que foram passando por aí. Eu conheço alguns jornalistas assim, que avaliam os governos e o estado do país pela facilidade que têm ou não têm em almoçar com os ministros, o primeiro-ministro ou o Presidente. E, quanto maior é essa facilidade, quanto mais são as atenções e intimidade que os ‘grandes’ da política lhes proporcionam, mais eles acham que estão informados, que influem e que são parte da história.
Convidado para almoçar em S. Bento, Saraiva não gostou da entrada de espargos e salmão fumado e conseguiu que o primeiro-ministro Guterres mandasse fazer uns ovos mexidos para ele. E acha que o episódio é importante para demonstrar a importância que se atribui na história da política portuguesa dos últimos anos. Não é: é apenas ridículo e de mau-gosto. Ao decidir-se, “por amor à verdade”, a escrever um livro onde torna públicas as conversas privadas que teve com os homens do poder, não se alcança onde esteja a coragem de que se arroga, mas apenas uma imensa vaidade e vacuidade. Teve nas mãos o Expresso, teve na mesa os poderosos do país e, afinal, pode orgulhar-se de quê - de ter inventado o saco de plástico para carregar o jornal que ele próprio classificou como a sua maior contribuição enquanto director?
Obs: Depois de ler este ataque fulminante de MST ao arqº Saraiva, hoje director do semanário Sol, fica-se com a sensação de que MST só não o apelidou de tontinho a carecer de internamento urgente. Confesso que não sei como é que José António Saraiva, que ainda será nobilizado (segundo a sua própria leitura dos acontecimentos futuros) irá "descalçar esta bota". Não será fácil Saraiva fazer um contra-ataque, sobretudo se utilizar apenas os trunfos do "saco de plástico". Mas aguardemos para ver o que Saraiva esconde na manga..., ou no saco.
<< Home