quarta-feira

Pactos de regime e democracia - por Vicente J. Silva -

Pactos de regime e democracia (in DN)
  • Vicente Jorge Silva Jornalista Até que ponto os pactos de regime - como aquele que o PS e o PSD acabam de subscrever na área da Justiça - são úteis, necessários e até indispensáveis para garantir a reforma e a credibilidade das instituições num Estado de direito democrático? Em que medida podem perverter e até subverter a substância e os mecanismos da própria democracia representativa? Estas são questões que não permitem respostas fáceis nem expeditas. Mas colocam-se hoje com premência cada vez maior nas democracias modernas. As velhas clivagens ideológicas e os cenários de ruptura radical entre modelos de sociedade foram sendo substituídos pelo imperativo dos consensos em áreas fulcrais, nomeadamente naquelas que implicam a governabilidade para além dos ciclos eleitorais e legislativos. Em Portugal é esse, manifestamente, o caso da justiça. Mas não deveriam sê-lo também os casos da Segurança Social - como pretendem o Presidente da República e o PSD -, do sistema educativo ou até da reforma da administração pública? A partir do momento em que o Governo do PS acabou, embora com manifesta contrariedade inicial, por aceitar o pacto da justiça, que é que o leva a não admitir outros pactos assentes numa mesma lógica negocial com o maior partido de oposição e de alternância governativa? Aberto um precedente, porque não alargar o horizonte dos compromissos e ousar ir mais longe? No caso da Segurança Social conhecem-se os argumentos formais: segundo o PS, a proposta do PSD não garantiria a sustentabilidade do sistema. Mas parece óbvio que, neste campo, as reservas ideológicas - mais estatizantes do lado do PS, mais liberais do lado do PSD - não são suficientes para impedir o diálogo e a aproximação pragmática das posições dos dois partidos nucleares da democracia portuguesa. O que explica a recusa do PS não são as reservas ideológicas, mas os cálculos estritamente (estreitamente) políticos. E, em particular, o facto de José Sócrates temer ficar prisioneiro na rede de um novo bloco central tecida por Cavaco Silva. Nada disto teria acontecido se Sócrates tivesse uma visão estratégica das reformas que pretende fazer (ou de que só assumiu a necessidade depois de ter tomado posse como chefe do Governo) e não uma visão meramente táctica e instrumental da acção política que oscila em função das circunstâncias - e da qual já fez refém o seu próprio partido. Imaginemos que o primeiro-ministro, em vez de ser surpreendido e ultrapassado pela iniciativa do pacto para a justiça, avançada por Marques Mendes e apadrinhada por Cavaco, tinha sido ele próprio a propô-la. Imaginemos ainda que Sócrates tinha ousado desafiar o maior partido da oposição para subscrever não apenas esse pacto isolado mas um pacto global sobre as questões cruciais de regime na perspectiva de uma década. Só que, para isso, era preciso que Sócrates tivesse a força de convicção e um genuíno sentido da necessidade de pactuar essas reformas para além de um horizonte de poder a curto/médio prazo, por considerá-las fundamentais para superar os bloqueios do País. Isso exigia, sobretudo, uma espessura de estadista com visão do futuro e não apenas empenhado em preservar, tão duradouramente quanto possível, a sua sobrevivência política. Evidentemente, é lícito argumentar que a lógica dos pactos de regime é perniciosa para a democracia representativa, na medida em que reduz o Parlamento a uma mera câmara de eco dos negócios políticos feitos nos bastidores - excluindo os partidos que neles não participaram e até a grande maioria dos deputados daqueles que formalmente os aprovaram. O problema é que os "excluídos" - ou seja: o CDS, o PCP e o Bloco de Esquerda - se limitam a uma agit-prop contra qualquer com- promisso reformador e os grupos parlamentares do PSD e do PS se diluem no anonimato da instrumentalização partidária. O actual quadro parlamentar é talvez o mais enquistado, mais medíocre e menos livre das últimas três décadas, o que coloca uma questão fundamental à crise de representação política em Portugal. Não parece ser isso, todavia, o que preocupa o actual chefe do Governo - apostado claramente em domesticar o PS à medida dos seus desígnios políticos e pessoais. Perante uma tal aridez da democracia representativa, faz todo o sentido questionar a legitimidade democrática dos pactos de regime - o da justiça ou quaisquer outros. Mas o cepticismo e o desprezo que Sócrates hoje ostenta perante a instituição parlamentar não são muito diferentes daqueles que, no fundo, Cavaco tem (e teve) acerca dela. O problema não são os pactos de regime, mas as formas democráticas de fazer política com base em ideias, convicções e liberdade de opinião. Essa seria, no fundo, a reforma fundamental.