domingo

Memórias Futuras - à frente do Tempo

Image Hosted by ImageShack.us Caro Tio Quim,
  • Gostei imenso da tua reflexão sobre o tempo das tuas memórias e de as teres temperado com gestos, comportamentos e atitudes de pessoas da nossa família - que nunca conheci. Permite-me, no entanto, introduzir uma ligeira nuance ao teu título - "Quando o tempo nos ultrapassa" -; já que quer a tua reflexão, mesmo que retrospectiva, assim como a conduta mais remota da tua avó..., que se interrogava pela eventual estranhesa ou falta que o Sr. Fialho de Gouveia poderia ter sentido no momento em que ela adoecera - me suscitam uma tal clarividência das coisas e dos pensamentos que, visto a esta distância, me compraz reconhecer em ti.
  • Quero eu dizer o seguinte: quer a estranhesa e perplexidade da tua avó - que gentilmente me dedicas, quer a tua racionalização - ambas e cada qual no seu devido contexto socio-cultural, denotam que nem um nem outro foram ultrapassados pelo tempo, ou sequer sucumbiram a ele como um escravo colonial que desistira de lutar pela sua independência pessoal.
  • A tua avó já equacionava a perplexidade comunicacional, embora considerasse que a caixinha preta pudesse ser uma auto-estrada de dupla via, em que as pessoas poderíam ver em ambos os sentidos; não me admira, pois no meu tempo, nessa mesma terra para lá de Abrantes - os jovens da minha geração de mais magros recursos e menos alfabetizados - tinham semelhante conduta, e à hora do telejornal ajeitavam o traço do cabelo com as mãos e até se assoavam, não fora serem vistos do outro lado da caixinha preta em muito mau estado. Portanto, se estas condutas tinham lugar em finais da década de 70, não vejo por que razão não poderíam ter lugar 30 anos antes. Julgo que era até natural e saudável. E hoje a estupefacção ainda é grande quando tentamos tocar no virtual e compreender em que medida ele veio substituir o real nesta complexa e crescente descompartimentação das fronteiras lógicas, sensitivas e visuais.
  • Muita gente se envolveu à bofetada e chamou de mágico e bruxo Albert Einstein quando nele, sobretudo em Inglaterra, se reconheceu que havia uma deflecção da luz pelo sol a fim de explicar a sua teoria da relatividade generalizada, ainda que a comunidade científica de então vibrasse com a sua nova teoria da gravidade - e foi por ela, estranhamente, que foi nobilizado, e nunca pelo seu maior feito: a teoria da relatividade. Por isso, Einstein no discurso solene de recepção do prémio só se referiu a esta e omitiu aquela.
  • Isto para mostrar como as novidades suscitam resistências às pessoas, e por vezes essas resistências assumem tamanha violência que se não fossem os factos a prová-la ninguém acreditaria.
  • A reacção da tua avó, e salvaguardadas as devidas distâncias, denota, afinal, que o homem não faz nada sózinho, e mesmo as descobertas mais remotas não são ilhas abandonadas, antes denunciam a curiosidade - por vezes mesmo temperada de estupidez natural - de alguém que parece ter percebido que o conhecimento e a criação de condições que levam à sua aplicação, só tem sentido se se revelar o continente de novas ideias, hábitos, que estiveram por detrás, no caso da tua avó, do invento da televisão.
  • É certo que no caso de Einstein - quase ninguém percebeu o alcance da sua teoria da relatividade generalizada, nem os jornalistas de golfe e de música que fizeram a cobertura em 1919, no final da I Grande Guerra - em que Einstein deixara de ser um distinto professor de física para passar a ser uma Figura de importância mundial - que substituiu as teorias de Isaac Newton sobre a gravidade.
  • E falamos de um homem que anos antes era considerado cum "cão preguiçoso" pelos seus professores. Mau aluno a tudo, com excepção a matemática e física. As coisas mudam, as pessoas também, e hoje a tua querida avó já saberia distinguir um televisor Saba de um gira-discos, e não confundir ambos com um portátil. Duvido, por exemplo, que M. Soares consigua fazer essa distrinça na sua percepção das coisas e do mundo - meio século depois.
  • Como diria Einstein, este nosso mundo "é um curioso manicómio". E quando passou a ser o centro das atenções dos media internacionais disse que se sentia como uma prostituta, pois todos queriam saber o que estava a fazer.
  • Todos clamavam por um pedaço de Einstein; houve até um empresário de circo, para aproveitar a sua fama mundial, que pensou que o poderia contratar para aparecer incluído num cartaz com comediantes, artistas de corda bamba e devoradores de fogo.
  • O que diria a tua avó se hoje pudesse presenciar tudo isto?
  • Julgo, pois, que fizeste bem em não responder quando perguntado sobre se o sr. Fialho teria sentido a sua falta... Consciente ou inconscientemente, revelaste presciência, conseguiste antecipar os efeitos da ciência e, modesto, pois é a melhor posição ante a ciência e a filosofia, ficaste-te na posição do espectador comprometido. Bem!!
  • E agora - aí estás - em forma - quase aos 70 anos - e volvido mais de século para me contares esta história que não pode deixar de ser, inevitavelmente, um tremendo sinal dos tempos. Talvez tenhas percebido que, por vezes, o carteiro é o Diabo a rugir coisas incertas e fácilmente refutáveis. Como que, talvez, antecipando, que o mundo é esse curioso manicómio. Fizestee bem em não arriscar, e mostraste sagesse com esse teu silêncio. Um silêncio, como dizes, era tão íntimo e peculiar na tua avó querida. Um silêncio que era, talvez, a sua marca d'água...
  • E é hoje a caminho dessa tua respeitável idade - que jogas ténis várias vezes por semana, várias horas por dia, e tens como parceiros homens com menos 20 anos do que tu, e bate-los a todos. Respiras e vendes saúde por cada poro de pele, tens um corpo e uma mente sã, lês, pensas e meditas excepcionalmente bem, dominas razoavelmente as lides informáticas que te permitem saber comunicar e consultar os sites na net, tens um blog formidável porque alimentado de boas histórias e boas narrativas, tens uma excelente mulher, tens filhos, gozas duma boa reforma, faz férias quando queres, estás lúcido, vigoroso... Tens vida, vendes futuro!!
  • Enfim, és daqueles homens que quando os teus sobrinhos alcançarem os setentas - ainda és capaz de te estar a recordar de histórias com quase 90 anos, porque as viveste e ainda te lembras delas e, ainda por cima, tens a coragem, a lucidez e a sabedoria de as contares na blogosfera em 1ª mão.
  • Tamanha é a tua arte que até eu, que sou da família, fico admirado com o que sabes e nunca contaste e, agora, qui ça, seduzido pelo computador que tomou conta de parte da vida (saudávelmente), te atreves a dizer e escrever boa parte do que vais pensando e meditando.
  • Pergunto-me se ainda haverá tempo para contares tudo aquilo que tens em carteira ou já andas a trabalhar em duas pistas: nas histórias que aqui partilhas mais aquelas que já escreveste no papel, que outrora servia de espelho que nos devolvia a imagem do nosso pensamento...
  • Como fazia a tua avó quando se punha diante do televisor Saba esperando pela reacção nunca vinda (mas sempre esperada) do Sr. Fialho...
  • Seja como fôr, julgo que nunca devemos abandonar a ideia de, um dia, podermos querer ler a mente de Deus ou, em última análise, tocar nos ombros dos deuses...
  • Sinal de que estamos vivos e bem lúcidos. Por tudo isso te estou grato; familiarmente grato.