quinta-feira

Fernando Dacosta - em entrevista - dando-nos um pedaço de Cultura. Um fragmento de Portugal

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O quotidiano abrasivo dos tempos mata-nos. A catadupa de notícias rouba-nos o tempo que podíamos dispensar à leitura e ao pensar. Ler e pensar para melhor escrever. Portugal anda muito acelerado, mas é uma pressa que não nos leva a lado nenhum. Por isso, é útil pararmos para pensar. A TV é o que é: uma choldra; os jornais e as revistas fazem sempre negócio com os mesmos. Metem dó. São piores que certos talhos, em que a carne é sobrevoada por moscas medonhas... Mosca residentes, que alapam à rocha do subsídio. É um trade-of que até os cegos vêem... O mérito vale só 7% - que é, como sabemos, comido pelo défice... Há que manter os lugares, os privilégios, o status, o emprego - e do agregado que dele depende e o mais. Há, sobretudo, que ser obediente, voar baixinho e dizer que sim ao presidente do Conselho de Administração - que indirectamente manda nas nossas casas. Por vezes nas nossas mulheres. Será isto um exagero... E assim é a vida nos media em Portugal. Voar baixinho, obedecer, bajular, elogiar incorentemente as coerências e o mais que agora não digo. Portanto, quanto pior melhor. Mas a história encontra excepções as estas regularidades e fidelidades caninas e hipocrisias sistémicas. Excepções que dão prazer ler. Ler para meditar. Fernando Dacosta é um desses escritores que por acaso é jornalista. Mas o homem escreve lindamente. Escreve simples. Com ritmo. Com sedução. Com beleza e musicalidade. Aquilo tem alma e, no fim, percebemos sempre a história que nos quis contar. Conheci-o através de Agostinho da Silva. Falámos uma vez. Mas através da sua produção, intensa e fértil, falamos regularmente. Fui as inúmeras conferências em que ele era o orador principal. Fala bem. É um comunicador que pensa (e não actua pela cartilha do marketing), qualidade rara num grande escritor. Conhecia muito bem Agostinho da Silva. E dele falava com propriedade. Nos seus trabalhos redescobre-se uma invulgar alma de investigador. Dotado de uma rica imaginação sociológica. Quem se lembraria de questionar o barbeiro de Salazar? ou a governanta do "Botas"? senão alguém excepcionalmente qualificado: técnica, cultural e humanamente. E faz tudo, pasme-se, sem arrogância nem presunção. Com discrição, consistência, qualidade e grande eficácia. Goste-se ou não do escritor - importa reconhecer um carácter e uma frontalidade verdadeiramente invulgares. Esta entrevista que aqui recuperamos é um traço desse saber acumulado ao longo de anos. Aí revisitamos o historiador, o escritor, o sociólogo, o antropólogo, o crítico, o reconstrutor de almas, enfim, o arquitecto da palavra e um engenheiro do sentido. Do sentido das coisas que dizem respeito a Portugal: no passado, no presente e no futuro. E é aqui que bate o ponto.. Se virmos tudo com olhos de relojoeiro detectamos alí uma preocupação prospectiva, um método de redescoberta de futuros possíveis. Razões suficientes para pensar e repensar o Portugal contemporâneo. Mesmo que à boleia de António Oliveira... Pois sempre é preferível escutar estas vozes autorizadas, especialmente distanciadas dos factos e dos homens que lhes deram origem, do que ouvir e ler os ex-ministros salarazengos que hoje discorrem literatura de autojustificação em croniquetas de revista classe A - onde são pagos a peso de ouro. Também aqui identificamos uma gerontocracia que não se exime de se passear pelas folhas das revistas.. No fundo, nunca se percebe se foram do antes ou se são do depois. São sempre amantes do poder. Qualquer que ela seja: político, económico, financeiro, fundacional e o mais. São como a face de Janus, sempre olhando para Este e Oeste ao mesmo tempo. Sempre procurando servir Deus e o diabo no mesmo trajecto. O que interessa mesmo é sacar as 150 mocas por peça, mesmo que se diga sempre o mesmo semanalmente ou de 15 em 15 dias. Primeiro, o Papa, depois a crise de valores, depois a reforma da ONU e, finalmente, a teoria da divergência e da convergência de Teilhard de Chardin. Confesso que os leitores da Visão merececiam melhor. E a mais baixo custo. Também por esta razão é que urge ler e reler as passagens interessantes desta entrevista de Fernando Dacosta. Está lá um bom pedaço de Portugal; um bloco de cultura que fica. Que tem a grande vantagem de não ser "fabricado" pelos cronistas do costume, inventando sempre a história à medida do fato que vestem; agora trata-se de ser sério na abordagem da história política contemporânea. Com emoção mas também com razão. E muita, muita distanciação. Neste caso, fiquei com a sensação de que revisitar o passado colectivo foi um tónico para olhar em frente e para cima. Geometrizando o horizonte e o zenite e postergando os fantasmas do passado, os mesmos que se passeiam nessas revistas repetindo sempre a mesma charla. Ao invés, esta entrevista reflecte um olhar sem vício de um País que, qualquer dia, consegue levantar-se e começa a anadar..Sem cunhas, sem muletas, sem tráfico de influências, só com o mérito de cada um - que passará a ser devidamente valorizado. Mas isto implica fazer rolar as cabeças a muita gente que hoje manda nos media em Portugal. Refiro-me aos boys dessa alta administração que se esconde sob a epiderme do status, do subsídio, do carro de luxo concedido pela Administração cifrónica e o mais que faz deles reis anões desta democratura telecomunicacional. Ao invés de tudo isto, bebendo nos valores educados da frontalidade e da sinceridade, do mérito e do trabalho árduo - encontramos as imagens poderosas das narrativas (psicopolíticas) de Fernando Dacosta. Tudo isto é tanto mais importante quanto estamos a ficar sem memória. E o homem do futuro, como diria F. Nietsche - é aquele que tiver a memória mais longa. Sempre com a simplicidade complexa que caracteriza o autor de Máscaras de Salazar e de Nascido no Estado Novo. Nós, já nascidos em plena democracia, é que parece estarmos órfãos...
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Fernando Dacosta - em entrevista
  • Fernando Dacosta nasceu a 12 de Dezembro de 1945, em Luanda. Passou a infância e a adolescência no Alto Douro, frequentando o Liceu de Lamego. Fixado em Lisboa (depois de uma breve passagem por Coimbra), estuda Filologia Românica, inicia-se no jornalismo, em 1967, e (depois do 25 de Abril) na literatura. Passou por diversos órgãos de informação, como Europa-Press, Flama, Comércio do Funchal, Vida Mundial, DL, DN, A Luta, JL, o Jornal, o Público . Actualmente pertence aos quadros da Visão. Foi director dos Cadernos de Reportagem e co-editor da Relógio d'Água. Na RTP1 teve uma rubrica sobre livros entre 1991-92.
  • Foi galardoado com 10 prémios: G.P. de Teatro RTP, da Associação Portuguesa de Críticos, da Casa da Imprensa (por Um jeep em segunda mão, 1978), G.P. de Reportagem (À Descoberta de Portugal, 1982), Jornalista do Ano Nova Gente (1982), G.P. de Reportagem do Clube Português de Imprensa (Os Retornados estão a mudar Portugal, 1984), G.P. de Litertura Círculo de Leitores (O Viúvo, 1986), P. Fernando Pessoa do jornalismo e P. Gazeta do Clube dos Jornalistas (Moçambique, Todo o Sofrimento do Mundo, 1991), P. Gazeta do Clube dos Jornalistas (O Despertar dos Idosos, 1994).
  • Tem mais de vinte livros publicados em diferentes géneros - reportagem, teatro, romance, narrativa e conto. O seu último, Nascido no Estado Novo, acaba de ser lançado. Paixão de Marrocos é uma edição trilingue, uma das quais em árabe. É, no entanto, um livro que fala muito de Portugal... Marrocos explica Portugal. Quando se dá o 25 de Abril percebi que estávamos a assistir ao fecho do ciclo imperial que nos marcou durante cinco séculos, para o bem e para o mal, ao nível do imaginário individual e colectivo. Ora tudo começou por Marrocos, conquistas, esclavagismos, colonialismos, retornos...
Image Hosted by ImageShack.us O seu interesse por África é muito forte nas suas obras. Os Retornados, Moçambique, Todo o Sofrimento do Mundo....
  • Pois é. A narrativa que escrevi sobre Moçambique fi-la quando o novo país comemorou 15 anos de independência. Nessa altura não se sabia nada do que estava a passar-se lá. O Maputo era uma espécie de ilha porque ninguém saía da cidade para o resto doterritório. Eu fui com o repórter fotográfico Luis de Vasconcelos. Andámos pelo interior, pelas zonas onde estavam os desalojados, os fugitivos da guerra, e descobrimos um universo de horror. As Nações Unidas tinham, aliás, declarado Moçambique como a zona de maior sofrimento humano do mundo. Chegaram a essa conclusão fazendo o somatório dos sofrimentos humanos, como a fome, as violações, as doenças, a guerra. Isso, que era completamente desconhecido, mesmo em Maputo, teve um grande impacto. Foi antes de se ter assinado o tratado de paz que, para surpresa da maior parte das pessoas, deu resultado, permitindo que o país começasse a organizar-se. O contrário verificava-se, entretanto, em Angola que sofria uma das guerras mais devastadoras de toda a sua história, em 1992. Hoje, Luanda é uma cidade em ruínas.
  • Em 1974 ela estava no auge, era uma capital em vários aspectos muito mais desenvolvida do que Lisboa, ombreando com várias cidades europeias. Os chefes da guerrilha, que tinham fugido muito cedo para o mato - como o Agostinho Neto ou o Samora Machel - quando voltaram a Luanda e a Lourenço Marques ficaram estupefactos com o seu desenvolvimento. Não eram mais as urbes um pouco toscas e primitivas que conheceram 20 anos antes. Em relação à política que Portugal seguia, então, em África há a destacar a interenção de um homem que teve um papel fundamental: o Marechal Costa Gomes. Revelou-se um dirigente sumamente inteligente e maleável que se foi adaptando às circunstâncias, estando quase sempre na mó de cima. Era um militar, um político, um diplomata muito competente, muito lúcido que tentou inflectir, por dentro do regime, as coisas. A história de que os salazaristas não passavam todos de saloios e arrogantes é um disparate. O próprio Salazar era um homem cultíssimo, tinha era uma cultura clássica, e de uma grande intuição. O cardeal Cerejeira, por exemplo, gostava de Herberto Herder e de Camus.
A figura de Salazar tem sido para si uma atracção especial...
  • O meu interesse por Salazar resulta do interesse que sinto pelas figuras que exprimem a natureza humana em situação limite, o poder limite no caso dele. O chamado Estado Novo foi uma época com características muito próprias que devem ser conhecidas. Como já passaram 30 anos sobre o seu desaparecimento, já não há o perigo de Salazar ressuscitar nem do seu regime voltar ao poder. Por isso achei que devia fixá-los. Até porque, e como dizia a Natália Correia, "ser-se revolucionário hoje é preservar a memória". É o que tento fazer dentro do meu estilo e das minhas características. Vivi a circunstância de conhecer a ditadura, de conhecer Salazar, de conhecer o 25 de Abril, de conhecer a democracia, de ter essas experiências todas o que me foi muito enriquecedor. Por outro lado, comecei a notar que a maior parte dos historiadores portugueses, com raras excepções, cometiam um erro crasso: faziam a história do Estado Novo baseados nos jornais. Ora os jornais do Estado Novo traduziam um país amputado, limitado, muito redutor. A história do Estado Novo tem que ser feita sobretudo, com testemunhos dos que o protagonizaram, enquanto estão vivos.Tornava-se-me, assim, urgente ouvir essas pessoas. Foi o que fiz, pessoalmente, isoladamente durante trinta anos. E que devia ter sido feito por algumas dessas inúmeras fundações que há para aí e que só servem para lavar dinheiro e fugir aos impostos. Que, apesar de se dizerem culturais, não fazem nada culturalmente. Nunca ninguém teve a ideia de ouvir pessoas como o barbeiro do Salazar, que é um homem fabuloso, ou a sua governanta, que só morreu em 1986, e que me contou coisas extraordinárias. Ela foi a "primeira-dama" que mais poder teve neste país, pois Salazar foi o português que mais poder deteve, durante mais tempo em Portugal.
O Fernando Dacosta faz uma síntese bastante eficaz no cruzamento do jornalismo com a literatura. Eu acho que isso explica as dez edições de Máscaras de Salazar...
  • Para mim o jornalismo é apenas uma disciplina da literatura, como é o romance, como é a história. Durante séculos os jornais foram, aliás, povoados por grandes escritores. O Fialho, que hoje é um nome cimeiro da literatura portuguesa, não publicou um livro em vida, apenas publicou crónicas em jornais que depois foram reunidas em livros e o tornaram num autor notável. O Raúl Brandão, que para mim é também um dos grandes escritores do século XX, publicava tudo primeiro em jornais. Essa divisão de que há uma escrita de segunda para os jornais e uma escrita de primeira para os livros é artificial, inculcada para tentar controlar o jornalista. Para mim é completamente indiferente saber se as crónicas de Fernão Lopes, por exemplo, ou se as crónicas da história trágico-marítima são literatura ou jornalismo. Não é fácil, porém, vencer as mentalidades que separam as coisas... no campo da literatura o José Cardoso Pires fazia a experiência ao contrário, escrevia romances que eram reportagens, como. A Balada da Praia dos Cães. O jornalismo é importante porque permite contactar o ser humano em situações extremas, boas e más, as que dão notícia e matéria de reflexão.
O Baptista-Bastos fala de si dizendo "Grande jornalista, porventura o maior repórter da sua geração; trouxe, para a letra de imprensa, a sensibilidade, o colorido, o lado humano, secreto, porventura quase insondável dos factos quotidianos."
  • É a generosidade dele... quando estou a escrever não estou a pensar se estou a escrever para páginas de jornal ou para páginas de livro. O que me determina é o tema que abordo.
Você é uma das poucas pessoas que tem analisado muito bem o que é isto de ser português, "povo pobre mas não miserável, velho mas não decadente, apaixonado mas não violento, a sua vocação de cigarra vai fazê-lo apetecido ao mundo" Acredita neste relançamento de Portugal?
  • O último encontro que tive com Jorge de Sena foi muito interessante: ele vinha do Norte da Europa, com escala em Lisboa. Eu e mais alguns amigos fomos ao aeroporto para o saudar. Ele abraçou-nos e disse: "felizmente que entro na civilização!". Espantado, respondi-lhe: "Então você entra nesta piolheira, vindo do Norte da Europa, e diz que isto é que é a civilização... ?" Rápido, respondeu-me: "Ora, lá só sabem trabalhar, ver televisão e beber cerveja. Desconfie sempre dos povos que não gostam de vinho." A primeira coisa com que nos deveríamos preocupar era conhecer o povo em que estamos e a que pertencemos, para não importar fórmulas estranhas. A maior parte dos políticos e dos intelectuais portugueses não o conhecem, são uns deslumbrados, uns pacóvios com o estrangeiro. Ora nós temos uma cultura, uma identidade, uma afectuosidade muito próprias. A Agustina Bessa-Luís diz que temos a cultura da afectuosidade como outros povos têm a cultura das ciências, das matemáticas, das filosofias. Isso, que agora não vale nada, talvez no futuro possa merecer importância.
  • A questão de Portugal poder ter um papel importante, ou não, depende da posição que cada um tiver em relação a ele. Dois homens extremamente catastrofistas, um de direita, outro de esquerda, o Franco Nogueira e o Miguel Torga, morreram convencidos que Portugal não iria sobreviver. O primeiro dizia que Portugal não iria sobreviver sem as ex-colónias, o segundo que Portugal não iria sobreviver ante o embate económico e cultural da Europa. Jamais esquecerei, aliás, a última vez que estive com o Miguel Torga: fui visitá-lo com a Natália Correia, a sua casa, foi na fase final da sua vida, estava deitado qual Camões depois de Alcácer Quibir. Há essas duas visões catastrofistas, mas eu não compartilho delas.
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Conviveu com os grandes nomes da nossa cultura
  • Tive a sorte de me ter dado com os grandes vultos deste país. Havia nessa altura uma coisa extraordinária em Lisboa, que eram as tertúlias que eles frequentavam, animavam. Tratava-se de gente de uma simplicidade extraordinária, sobretudo com os jovens... eu entrava na Brasileira e eles falavam-me como se fosse um igual a eles, com toda a paciência... conhecia já o Aquilino Ribeiro que tinha sido amigo do meu avô, andaram os dois fugidos à polícia.O Jorge de Sena, que era um homem muito irónico, dizia com muita graça que as únicas universidades interessantes do país eram os cafés. Era neles que se aprendia, porque nas outras, nas verdadeiras, só se perdia tempo. E citava o exemplo do Fernando Pessoa que, matriculado em Letras, só lá esteve uma semana. O contacto que tive com essa gente é um tema do meu novo livro que se chama precisamente Nascido no Estado Novo.
Image Hosted by ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.usImage Hosted by ImageShack.us Entrevista conduzida por Luís Souta com Andreia Lobo Autor do Artigo Fernando Dacosta Jornalista. Escritor. Luís Souta Instituto Politécnico de Setúbal lsouta@ese.ips.pt