sexta-feira

Prisões - por António Vitorino -

o sublinhado é nosso.
As estatísticas sobre a evolução da criminalidade são sempre complexas de analisar. Não apenas porque os crimes declarados às autoridades não coincidem exactamente com os praticados, havendo um certo número de casos que não chegam às entidades oficiais, mas também porque as comparações falam de números agregados quando o interesse para a prevenção e a actuação futura está sobretudo na sua leitura fina em termos regionais e locais e por perfis dos próprios criminosos.
Mas as estatísticas são relevantes na parte em que indiciam grandes tendências por tipos de crimes. Nesse particular, o aumento da criminalidade violenta exige uma análise cuidada quer das suas causas, quer das vulnerabilidades que o propicia quer da motivação dos seus agentes.
Um dos motes mais comuns no discurso político perante um aumento da criminalidade consiste na queixa de que é escassa a utilização da prisão preventiva por parte dos juízes e que esse pretenso laxismo é responsável pela reincidência. Acresce que se invoca também a alteração recente da legislação penal e processual penal como causa da libertação de presos que reincidem na actividade criminosa.
Dados divulgados há alguns meses mostram que estas leituras são apressadas: nem o número de presos preventivos é inferior à média europeia, nem a lei teve o efeito que lhe é imputado nem a taxa de reincidência entre nós aumentou significativamente. Mas o debate político vai decerto prolongar-se em torno destas interpretações.
O que normalmente não figura nestas análises é a relação entre o sistema prisional e a evolução da criminalidade. Mesmo os mais acrisolados protagonistas de um discurso securitário tendem a escorraçar do seu discurso a função das prisões e quando desempenham cargos políticos o investimento neste sistema de garantia do Estado de direito nunca figura como uma sua prioridade. Só assim se explica que durante mais de década e meia não tenha havido investimentos de monta nas infra-estruturas prisionais e que não se tenha antecipado nesse plano a evolução previsível da criminalidade entre nós.
As prisões são um mundo concentracionário, por definição subtraído ao olhar do grande público. Sabe-se que a dupla missão que lhes está confiada é cumprida desigualmente: por um lado, expia-se a pena e, por outro, prepara-se a ressocialização dos detidos.
A primeira vertente é normalmente enfatizada, a segunda, menos sublinhada, embora existam entre nós casos e práticas muito interessantes neste domínio.
Um relatório do professor Freitas do Amaral veio há alguns anos chamar a atenção para a necessidade de uma intervenção de fundo no sector prisional. Esta semana, o Ministério da Justiça veio divulgar não apenas um programa de investimentos na construção e modernização de prisões no valor de 450 milhões de euros, mas também uma reformulação do sistema de detenção segundo critérios de especialização em função da natureza dos presos (preventivos, condenados, em regime aberto com ou sem actuação dos presos no exterior) mas também da gravidade dos crimes e do elevado risco de segurança envolvido.
O novo modelo de organização do sistema prisional vai ter de conciliar estes critérios com regras de proximidade dos presos em relação ao lugar de vida dos seus próximos, designadamente familiares, o que não será decerto uma tarefa fácil mas que releva na vertente da ressocialização.
No desenho destas soluções importa, por isso, considerar a ligação que existe entre a lógica de organização e funcionamento das prisões e a evolução da própria criminalidade, em termos regionais e em termos de gravidade dos crimes. Com efeito, muitas vezes, a tendência para a radicalização da criminalidade e para o contágio para formas mais elevadas de violência criminal começa nas condições do regime de detenção, sendo pois aí que se impõe tomar desde logo as precauções necessárias.
Só assim se poderá compreender que as prisões não são apenas uma forma de punir culpados por actos criminosos mas também instrumentos de salvaguarda da segurança e da paz públicas cumprindo uma função preventiva e ressocializadora.
Obs: Em tempos idos recordo que Agostinho da Silva foi visitar alguns estabelecimentos prisionais, na sua mente havia a concepção de que é a sociedade que nos aprisiona e, portanto, o melhor seria mesmo abrir os portões das cadeias.
Análogamente, e recorrendo à narrativa do filme Voando sobre um ninho de cucos que tem no grande actor Jack Nicolson o protagonista - chegou-se a uma conclusão inversa, ou seja, após a fuga desse hospital psiquiátrico em que eles se encontravam, descobriram uma sociedade mais feroz e agressiva, apresentando difíceis condições de vida.
Talvez o melhor, como sucedeu, fosse regressar ao dito estabelecimento psiquiátrico, onde tinham essas condições. Isto revela, de per se, a dificuldade em determinar causas únicas que levam os criminosos a praticar crimes e a reincindir neles continuadamente ou de forma mais ou menos intermitente. É óbvio que quando se vai parar à cadeia não se regressa de lá com um doutoramento ou com um convite expresso para ser CEO duma multinacional a ganahar seis ou sete vezes mais do que o PM - que ganha mal, diga-se de passagem.
Vejamos a coisa por este prisma: a racionalidade de um delito varia consoante o observador entende os seus resultados imediatos ou as suas consequências mais mediatas. Por exemplo, o assalto à mão armada permite reembolsar quase instantaneamente uma soma razoável, mas pode conduzir o seu autor à cadeia. Ou seja, se o resultado imediato foi atendido, as suas consequências foram indesejáveis.
Esta é, em boa medida, a sequência estrutural do crime, seja furto, roubo, violência, toxicomania, agora o carjacking e também o homejacking e outros crimes para os quais ainda não há lei.
No fundo, um criminoso vive a crédito, aproveita o tempo imediato, correndo o risco de pagar mais tarde. Mas quando se avaliam os dossiers de reincidentes, cobrindo um período de uma década, revelam-se as consequências catastróficas do crime: reclusões repetidas, empregos perdidos, divórcios. O horizonte em que a acção destes homens se inscreve é demasiado imediato. Reflecte uma miopia temporal que não lhes permite governar racionalmente as suas vidas. Para estas pessoas o futuro não existe, só o presente tem lugar, e esse empurra muitos deles para o crime.
E nalguns casos não é só o factor necessidade, mas um mix de luxúria, embriaguez e excitação. É como se fosse um espectáculo do tipo Moulin Rouge que põe em cena esses homens e que depois do crime vão todos comemorar o resultado do roubo com cocaína, champagne num caldo de gozo venal - que nem sempre deriva do facto de terem sido presos em estabelecimentos prisionais com poucas condições de higiéne e salubridade.
Os criminosos que andam por aí também não deixam de disputar entre si um código de honra que resulta, em primeiro lugar, da ambição do lucro, mas também do controlo do gang, da competição, da "honra", da vingança e até mesmo da sexualidade que, não raro, anda associada aos crimes.
E a razão pela qual este tipo de pessoas já não se cura nas cadeias velhas nem nas cadeias novas (a construir ou a requalificar) decorre do facto de os problemas que transportam consigam foram sendo acumulado desde o seu nascimento, no seio da família e prolongou-se depois pela vida fora.
Melhores instalações presidiárias podem, eventualmente, fazer sentir ao agente criminoso que cumpre uma pena e que ele, afinal, até poderá resgatar a sua antiga honra e restaurar a sua velha dignidade, mas o "bichinho", aquele impulso determinante para o crime, como quem vai praticar ténis, está no seu ADN, e é despoletado sempre que a ocasião e as companhias se conjugam nesse sentido.
Por outro lado, a busca de sensações fortes de vária ordem: a embriaguez, a euforia, a vertigem que subjazem à preparação dos crimes é uma energia que não é marginal. O assalto a uma vivenda, o vandalismo, o furto de um veículo de 50 mil euros, o assalto à mão armada, as lutas de faca ou mesmo a violação têm, para personalidades mal estruturadas que não conhecem o arrependimento e são insensíveis à dor de terceiros, representa o seu quê de estímulo.
Prova provada é que são depois os próprios detidos a confessá-lo quando exprimem as sensações vivenciadas no cometimento desses crimes. Não podemos esquecer que por cada furto, roubo, agressão que cada um desses agentes criminoso comete é, para eles, uma "droga" que repõe um sentimento de justiça que eles reclamam e que, no seu entender, acham que a sociedade lhes tirou quase desde que nasceram.
Portanto, o que é natural é a reincidência dos crimes, até porque muitos deles tornaram-se grandes especialistas, além de ser uma "profissão" bem remunerada, não tem horários e, não raro, também se tem o status que muitos de nós, na normal vidinha civil e bem comportada, jamais conseguimos alcançar.