domingo

Alegre inside-out: a ilusão do poder e a evanescência da sua manutenção

Manuel Alegre está a tentar promover a vaga de fundo para reunir o seu milhão de votos das últimas eleições presidenciais. Tomou-lhe o gosto e ficou sedento, ou melhor, irredento, e se até conseguiu bater o fundador da democracia, Mário Soares (incompatibilizando-se com ele), porque não tentará ele agora esfrangalhar a maioria absoluta de Sócrates?!
Nem que seja para se vingar da arrogância da ministra da Educação, agradar áquela malta dos "profes" e dos sindicalistas da Fenprof do sr. Nogueira, vingar-se dos ricos aflitos da Banca e do BPP, do código do Trabalho (do agrado do presidente da CIP), ou ainda de um conjunto de notáveis do PS que Alegre não grama - e que não o gramam a ele - como sucede em todos os partidos.
É óbvio que o poeta Manuel Alegre tem razão, ainda que residualmente, num conjunto de temas que afligem os portugueses e com os quais até me identifico: apoiar o BPP não é bem a mesma coisa do que nacionalizar o BPN, aprovar o código do trabalho - desde que ele não agrave a precariedade das relações laborais. Eis duas questões que carecem de esclarecimento pelo Governo, para evitar deixar a ideia de que até a "banca dos ricos" beneficia de apoios especiais que reformados, desempregados e clientes em geral que quando precisam de um empréstimo têm imensas dificuldades em o obter.
Nesta medida, Alegre faz eco da voz dos mais desprotegidos, duma classe média baixa que se está a afundar porque a carestia de vida, a instabilidade do emprego não permitem grandes folgas no consumo e na planificação da vida a médio e longo prazos.
Nesse sentido, creio que Alegre poderia fazer mais dentro do PS - através do grupo parlamentar a que pertence, do que com um pé dentro e outro fora (o tal "inside-out"), como tem vindo a fazer. Com propostas e projectos de lei para combater a pobreza, apoiar os reformados, integrar os excluídos, delinear um modelo de avaliação alternativo dos profes, ou seja, Alegre poderia fazer-se eco na Assembleia da República de um conjunto de iniciativas legislativas nas mais diversas áreas da governação a fim de fazer a diferença e, desse modo, dar uma lição política, moral e histórica aos seus colegas parlamentares do PS - onde Alegre tem assento, nas filas de trás. Mas parece que Alegre só se lembra dos deserdados da vida em momentos pré-eleitorais...
Mas não é nada disso que Alegre faz. Ao invés, o poeta Alegre aposta em jogadas de of-side, em guerrilha política, fora do círculo do poder e da influência do PS-parlamentar (leia-se, de Alberto Martins) e do próprio Sócrates, enquanto PM.
Alegre promove e organiza jantares, lanches, convívios, reuniões - onde estão presentes o BE, alguns desiludidos do PS de Sócrates, poucos comunistas, alguns sindicalistas e os amigos pessoais do poeta. Uns que já vêm de trás, do tempo da luta antifascista ao velho "botas", outros são gente mais nova - ligada aos serviços, à administração, ao ensino, às novas tecnologias, no fundo gente nova e com valor que tem ajudado a dar um élan ao poeta a prosseguir nesta sua caminhada tão indefinida quanto difusa. Gente que vem das presidenciais e que também crê que Alegre será mais do que um poeta e mais do que um deputado.
Estão rotundamente enganados, mas é esse engano, essa ilusão do poder que os move, que os dinamiza que, afinal, os aliena.
Mas como Alegre não faz a mínima ideia do que é ter a ferramenta do poder nas mãos para delinear um projecto nacional e executá-lo, ele limita-se - evocando-me aquelas reuniões de província das senhoras de meia idade para dissertarem sobre as vantagens das caixinhas de marca "Tapar-Where" - a confraternizar nesses eventos sociais, onde aparece um Louçã reflexivo (fingindo-se a estátua de Platão), um Carvalho da Silva hiper-activo repetindo a cassete do Cunhal, um tal sôtor Guenote (que tem um blog onde só tecla e diz banalidades, mesmo estando calado) mais um conjunto de pessoas, certamente com valor - mas que não conseguem conferir nenhuma ideia de conjunto, uma racionalidade política ou unidade áquele "albergue espanhol" (quiça copiando o modelo ao psd) em que Alegre está a converter esse tal movimento de convergência duma esquerda órfã de projecto, de sentido, de devir histórico e de funcionalidade política.
É óbvio que no cerne de tudo isto está um poder, um capricho, um orgulho, uma história, uma vida, um desejo, uma vontade de vingança pessoal de Alegre (que remonta à eleição de Socrates como Secretário-Geral do PS - e que se agravou quando foi eleito PM) - de dizer que também risca no PS e, assim, é capaz de condicionar o PM na reconfiguração da esquerda numa fase pré-eleitoral que é decisiva para todos nós: empresas, famílias, cidadãos - em que as suas condições de vida se têm agravado no mundo, na Europa e também em Portugal por uma crise múltipla - que é ao mesmo tempo financeira, económica e social.
Ora, é com base nesta crise de confiança que Alegre joga, é com ela que o poeta estica a corda - não já a Lurdes Rodrigues, titular da Educação, mas colocando o garrote no pescoço do próprio PM, de quem ele não gosta, por questões de estilo pessoal e até de natureza geracional. Só não lhe chama "fascista" porque Sócrates é o PM de Portugal post-25 de Abril que mais vezes vai à AR e, para azar de Alegre, ainda não perdeu um único debate parlamentar. É óbvio que isto irrita muita gente, dentro e fora do PS...
No fundo, Alegre - aproveita a sua dupla condição de "socialista inside-out" para tentar abater o PM, "atropelá-lo na passadeira", crucificar algumas das suas políticas públicas em ano de eleições, debilitá-lo ante a fragmentação socioeleitoral da esquerda e, ao mesmo tempo, projectar-se simbólicamente como uma espécie de federador da nova esquerda dos descontentes e, por essa via, construir um projecto sem nome, sem ideias originais, sem marcas, sem alternativas de poder credíveis. Tudo, afinal, redunda em poesia. Uma poesia do inominado, indizível.
Poesia e coragem, e voz grossa - eis as três marcas d´água de Manuel Alegre.
Perguntado pelo jornalista - então e agora (?!) - que ideias ou projecto para Portugal: Alegre responde como um cidadão pouco letrado, duma classe média-baixa em paragem de auto-carro. Logo se vê, isto é um processo, uma luta, é preciso desbravar caminhos, mais um conjunto de generalidades que temo bem redundem em mais e mais poesia - que depois ninguém lê e nenhuma utilidade terá: nem para crianças em infantários, nem para idosos em lares. Ficará o vazio.
No meio de todo este trajecto alegre o poeta tem umas tiradas com as quais me identifico, confesso. Dou um exemplo: quando as autoridades estão preocupadas em ajudar o BPP e não se preocupam com a aquisição do espólio de Fernando Pessoa - qualquer português médio, mínimamente letrado, adere a isto, e aqui o poeta Alegre pontua na sua escala de contabilidade política. Quando pugna por um Código de Trabalho mais justo e favorável aos trabalhadores (discriminando-os positivamente) - é óbvio que isto também cola na opinião pública, cai bem aos sindicatos e a mensagem acaba por ter um retorno que funciona como suplemento d´alma para Alegre - que incha diante dos microfones e das câmaras de tv.
Mas isto não basta para criar um projecto nacional alternativo áquele que ele hoje critica em Sócrates. E se Alegre anda em busca dessa estátua ainda por esculpir, pergunto-me se não seria mais útil ele perfilar-se para Belém em vez de tentar federar uma esquerda difusa, errática - que não conta com o PCP - e será uma espécie de manta de retalhos dos mais radicais que emigraram do PCP, do BE, dos sindicatos e conexos. Será uma espécie de capelinhas ou "cogumelos de Fenprofes" em cada bairro social, onde alguns ainda clamam a palavra: antifascitas!!!
Alegre, com estas reuniões e convívios de "Tapar-Where" - arrisca-se a três coisas:
  • 1. A colocar mais rapidamente Cavaco em Belém, num 2º mandato;
  • 2. Desbaratar toda a sua carreira política - que depois não servirá para candidato a PR, candidato a PM nem para federador de coisa nenhuma - porque Manuel Alegre é estruturalmente um poeta, e não um líder de campanhas ou alguém com perfil mais executivo;
  • 3. Fazer um poema sobre a ilusão do poder e a evanescência da sua manutenção.
A alternativa a isto é o deputado Manuel Alegre começar a escrever as suas memórias, e nos intervalos pensar na elaboração de um Tratado sobre o capricho e a vaidade.
Coisas que Alegre tem em demasia, e que hoje lhe toldam as vistas.
Porque, para sermos sérios, em 20 ou 30 anos democracia nunca vi Alegre genuinamente preocupado com os desempregados, com os marginais, com os licenciados em busca do 1º emprego ou até mesmo com as condições de desigualdade que hoje infelizmente ainda separam uns portugueses dos outros.
Discursos pseudo-desenvolvimentistas - qualquer pessoa que saiba escrever umas linhas e tenha alguma dicção para as ler faz o que Alegre anda por aí a fazer...
A não ser que tudo isto não passe duma aposta com Louçã para criar um poema surrealista neste contexto de globalização predatória em que hoje vivemos.