sexta-feira

INJUSTIÇAS - por António Vitorino -

O sublinhado é nosso.
Para tanto contribuiu a cobertura televisiva em directo, muito em especial as imagens da operação de resgate dos reféns.
Nas sociedades mediáticas, ocorrências de criminalidade violenta desencadeiam sempre reacções emotivas muito generalizadas. Só que a política criminal de um Estado de direito que se preze não pode andar a reboque das emoções do momento.
Quando os autores dos crimes são estrangeiros, àquelas reacções emotivas adiciona-se, em regra, a estigmatização dos imigrantes, denunciando sentimentos xenófobos recalcados ou encobertos que assim se manifestam no calor da reacção colectiva.
Ora é nestes momentos que importa mostrar fidelidade aos princípios e valores que definem a nossa identidade democrática. Mesmo que isso seja impopular.
Com efeito, nada legitima que se associe imigração a criminalidade.
Quem pratica um crime deve ser punido pela lei penal, igual para todos, sejam nacionais ou estrangeiros residentes em Portugal. Sujeito às mesmas penas e julgado de acordo com as regras gerais do nosso direito penal. Nenhuma situação de vulnerabilidade nem nenhum estatuto pessoal pode criar regras de excepção, seja para agravar seja para desagravar a punição.
Logo, o autor do sequestro e da tentativa de assalto que sobreviveu à intervenção policial deve ser submetido a julgamento e punido em conformidade com o nosso Código Penal.
Mas importa igualmente recordar que não existe nenhuma tendência para a actividade criminosa específica dos imigrantes. Retomando as conclusões de um estudo levado a cabo por dois sociólogos em 2001 (Hugo Seabra e Tiago Santos), convém reiterar que as taxas de condenação entre os portugueses e entre os imigrantes são muito próximas entre si, se tomarmos em linha de conta amostras comparáveis (por género e níveis etários). E mesmo considerando o número global de assaltos a bancos registados nestes últimos meses, também em função das ocorrências criminais em causa, concluir-se-á que foram em número superior os casos em que os assaltantes eram portugueses do que aqueles que tiveram como protagonistas imigrantes.
Estigmatizar os imigrantes em geral ou algumas comunidades de imigrantes em particular é o pior de todos os caminhos. Além de ser uma profunda injustiça!
Nota final: Em carta ao director do jornal publicada a 12 de Agosto, um leitor reagiu ao meu artigo "Força democrática", verberando o meu silêncio perante o caso de tortura praticado em Guantánamo sobre um jovem preso há cinco anos, quando tinha 14 anos e cujos interrogatórios brutais foram recentemente divulgados pelas televisões. Ora, desde a criação do campo de Guantánamo, em 2003, que a União Europeia - pela voz de Javier Solana, alto-representante para a Política Externa, e de mim próprio, então como comissário da Justiça - denunciou a sua existência como contrária ao direito internacional e repudiou inequivocamente o uso da tortura em toda e qualquer circunstância.
Foram críticas públicas e reiteradas que não é legítimo ignorar nem querer fazer esquecer. Quanto ao caso do jovem detido, o leitor não tem de facto obrigação de saber que fui um dos nove juristas europeus, liderados pelo ex-ministro da Justiça da França Robert Badinter, que apresentaram à justiça americana a título de amicus curiae um documento denunciando o tratamento desumano a que o jovem foi sujeito e refutando a legalidade do processo e das acusações que lhe eram dirigidas. E fizemo-lo há mais de um ano, sem dependência de qualquer implicação mediática. É que há quem se indigne (e bem!) da boca para fora e quem aja em defesa de valores mesmo sem procurar com isso atrair qualquer publicidade. Só que se deve ser prudente quando se assume o papel de julgador moral dos outros. A não ser que o leitor ache que apenas teve azar com o exemplo que escolheu, claro!
Obs: Com efeito, há momentos de azar. Um azar que não atinge apenas os políticos quando caem em desgraça ou os analistas quando falham nas suas previsões e observações, mas também os leitores, sobretudo os mais desprevenidos e desatentos. Bastaria ao leitor em apreço conhecer algumas das prosas de António Vitorino para perceber a sua profunda preocupação humanista.
Nesta prosa, apenas para exemplificar, isso está bem patente:
Dignidade humana, dn - transposto para o Macro (link).
Quanto às conclusões do estudo de 2001 - confesso ter dificuldades em subscrevê-las na íntegra. Pois a criminalidade mais violenta hoje praticada em Portugal está associada a agentes criminosos de origem brasileira e do leste. E compreende-se pelo facto de nessas sociedades a violência integrar o caldo de cultura em que as pessoas nascem, vivem e socializam. Mas nesta matéria os números e as estatísticas disponíveis devem valer tanto como os números referentes aos índices de corrupção em Portugal: sabemos que existe, mas não a conseguimos detectar e combater eficazmente, apesar da demagogia populista e retroactiva do "estrangeirado" João Cravinho.
O que fazer, então?!
Talvez aqui tenhamos todos de ser humildes e copiar alguns dos padrões de vida do Norte da Europa e tentar perceber as respostas para as nossas inquietações. Seja as relativas à corrupção, seja as que se reportam à criminalidade em Portugal - que envolvem imigrantes (ou não), embora aqui a Lei não faça distinção em função da natureza da cor da pele, da raça, da nacionalidade ou da religião do agente criminoso que resolveu, a dado momento, transgredir e ser amigo do alheio ou até mesmo praticar homicídios no decurso dos crimes.
Há, de facto, momentos de azar. Um azar dos Távoras que por vezes até tolhe os leitores...