quinta-feira

Uma nova rúbrica da Análise política: a análise humanitária

[...]As imagens que vimos na semana passada da funcionária gravemente doente e parcialmente paralisada de uma junta de freguesia, que foi obrigada a apresentar-se ao serviço por uma decisão burocrática inconcebível e desumana, constituem o mais severo libelo acusatório de um sistema que manifestamente despreza esse valor central da dignidade da pessoa humana(link)[...]
A complexidade da vida social, económica, política e financeira conduziu à emergência de inúmeros analistas, porque vários também são os campos de análise que essa mesma realidade suscita ao campo de observação. Há hoje comentadores para todos os gostos, até o douto Marcelo fala de fados, faduchos, azuleijos. Tudo, nada escapa. Qualquer dia temos analistas de analistas...
Aparte esta espuma dos dias, o que é novo agora em Portugal é uma nova frente de abordagem dos factos públicos, ou de alguns factos de natureza privada mas que assumem, pela sua problematicidade e poder de contágio social (porque isto "amanhã" pode tocar a qualquer um de nós, pois!!!), rapidamente uma dimensão pública.
É o caso de inúmeras situações de pessoas que têm doenças incapacitantes para o regular exercício das suas profissões. E se nuns casos o candidato à reforma, de má fé, é portador duma vontade que procura ludibriar a Junta médica que afere (ou não) dessa incapacidade, outros há em que as pessoas estão, de facto, incapacitadas para trabalhar. Há já inúmeros casos conhecidos entre nós, e nalgumas situações essa prova fez-se da pior forma: com a morte.
Neste contexto dramático, porque os blogues também devem ter uma finalidade social, destaco aqui aquela situação que está a sensibilizar o país, que também tem emoções que vão muito para além do desaparecimento da menina Mady ou da menina Isaura que tem vários pais: o da senhora que trabalha numa Junta de Freguesia e tem um grave problema de coluna que a obriga a fazer, práticamente, toda a sua vida na cama, e mal se consegue mexer. É, no fundo, como um bébé, pois está dependente de terceiros para comer, lavar-se, locomover-se e o mais - como é visível pelas imagens editadas pelas estações de TV.
Dito isto, por que motivo chamo eu aqui à colação a imagem de António Vitorino - que parece estar a rezar - e que em Novembro último escreveu no DN um artigo sob a epígrafe Dignidade humana [link]!?
Por uma razão tão simples quanto compreensível. Já aqui há umas semanas AV ocupou a sua coluna no DN para denunciar a escandaleira em que opera a Junta de médicos que chumba a torto e a direito pessoas manifestamente incapacitadas. Hoje um médico amigo que por lá trabalha disse-me que era por causa do mau olhado que certos doentes lançam sobre a Junta médica, que depois reagem de forma canalha e vingativa mandando a deontologia da sua profissão às urtigas. E daí resultou uma intervenção directa e pessoal do próprio ministro das Finanças; hoje de manhã, na sua crónica matinal da Linha da Frente da TSF - foi o mesmo António Vitorino quem voltou a denunciar a situação de incompreensão e intolerância (para não lhe chamar outra coisa, como me apetecia...) da dita Junta de médicos.
Isto abre caminho em Portugal para aqueles casos médicos que não tendo uma resolução à 1ª, nem à 2ª - podem rasgar terreno para que o campo da análise política se confronte, doravante, com os chamados absurdos da vida, e aí são os analistas políticos que inauguram um novo ramo da observação que, à falta de melhor designação, podemos aqui qualificar de análise política humanitária. Pois no caso vertente é disso que se trata.
Até parece, se não conhecessemos o contexto de sofrimento da senhora em questão, que estaríamos aqui a retratar uma situação de guerra civil, de refugiados e da aplicação do direito humanitário nos Grandes Lagos, no Darfur/Sudão, no Burkina-Fasso, na Nigéria, na Etiópia, na Somália, na Costa do Marfim, na Serra Leoa ou na Libéria.
Pergunto-me, depois desta ronda pelo velho e massacrado continente africano, que agora se mudou de malas e bagagens para o Parque das Nações da Expo inaugurado ao tempo de António Guterres, e que hoje acolhe a cimeira UE/África, do que Sócrates está à espera para chamar o ministro da Saúde, o das Finanças para resolverem definitivamente esta questão da credibilidade médica que tem ensombrado a decisão de algumas juntas que, no meu entender, deixam muito a desejar.
Temo bem que António Vitorino ainda passe à história não por ter sido um bom ministro da Defesa Nacional, não por ter sido o melhor Comissário Europeu na área da Justiça e Assuntos Internos mas por, pasme-se, ter de andar a instar - nas páginas dos jornais e nas rádios - certos ministros do governo Socas que ponham ordem numa tal casa chamada - Caixa Geral de Aposentações - para impedir que, de futuro, as juntas de serviço não se assemelhem mais a juntas de quadrúpdes (que tomam decisões com os pés) do que a verdadeiras equipas de avaliação que conseguem combinar numa decisão clínica duas coisas: fiabilidade médica e humanidade.
Apetecia-me terminar esta croniqueta com uma valente asneira, daquelas muito grandes a terminar em "X" que ecoassem a 1300 décibeis nos tímpanos dos médicúsinhos que tomaram tamanha decisão - mas por respeito à senhora incapacitada, que espero veja em breve a sua situação resolvida, não o faço.
Guardo-me para depois, para verificar, afinal, que "tipo de Junta" tem o País pela frente...
PS: Ao António Vitorino tiro, de novo o "chapéu", por ter empregue, mais uma vez, os seus recursos intelectuais, que não são poucos, na denuncia destas sacanices socioprofissionais com tiques corporativos desafiantes para toda a sociedade.
É a isto que chamo fazer análise política com sentido de nobreza.
Afinal, o que é (ou deveria ser) a Política!?