sábado

Escolher responsavelmente - por António Vitorino -

Escolher responsavelmente António Vitorino
Jurista
"Comecemos por reconhecer que a campanha eleitoral para o referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez do próximo domingo foi substancialmente diferente da que ocorreu há oito anos.
Claro que aqui e além houve excessos e, tratando-se de um tema delicado e que suscita tantas emoções, algumas vezes não se terá resistido a brandir fantasmas ou a incorrer na tentação de lançar anátemas ao campo adversário. Mas tais atitudes foram quase sempre marginais.
O que releva é que houve de facto um debate de fundo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas e, sobretudo, que dos dois lados houve a preocupação de construir uma argumentação que sustentasse a sua própria posição e se contrapusesse aos argumentos do outro campo.
O debate foi esclarecedor? A crer nas sondagens dir-se-ia que sim. Na realidade ao longo da campanha o número de eleitores indecisos veio a diminuir. Como sucede entre nós, nos referendos, o dado menos fiável das sondagens reporta-se à taxa de participação no referendo. Com efeito, nos referendos anteriores, as sondagens indicavam índices de participação elevados, que, depois, não se confirmaram no dia do referendo, fosse o da interrupção voluntária da gravidez fosse o da regionalização.
Neste contexto, o referendo do próximo domingo também representa um teste à própria instituição referendária. Independentemente do que se pense sobre a exigência constitucional de uma taxa de participação efectiva de mais de 50 por cento dos eleitores inscritos para conferir força vinculativa ao resultado do referendo, a verdade é que desta feita não se pode dizer que a campanha eleitoral tenha sido um factor de desmobilização dos eleitores. Pelo contrário, a demarcação dos campos com base em linhas de argumentação distintas mas, no essencial, não extremadas permite clarificar os termos da escolha e, nessa medida, representa um incentivo adicional à participação dos eleitores. Espero que o referendo passe este teste de maturidade com nota positiva no próximo domingo.
Reconheço, contudo, que a clareza das opções que se colocam aos eleitores foi de algum modo afectada por algumas propostas de última hora vindas do campo do "não", tentando encontrar uma saída dita "a meio caminho". Estas propostas do tipo "crime sem pena", ou "incriminação com suspensão automática do processo penal" representam, em meu entender, uma tentativa de responder à força de um dos argumentos centrais da campanha do "sim", o da iniquidade da pena de prisão postulada pela lei actual e que se pretende alterar.
Houve quem, no campo do "sim", criticasse estas propostas considerando-as meramente tacticistas ou eivadas de uma certa hipocrisia normativa, argumentos estes que, em meu entender, até podem ter algum fundamento. Mas são de outra ordem as objecções essenciais que se podem (e devem) deduzir a estas propostas do campo do "não".
Desde logo este tipo de soluções não cria nenhum horizonte de esperança para resolver o flagelo do aborto clandestino, na medida em que a manutenção de uma moldura penal, mesmo que "neutralizada" em termos de aplicação da pena, sempre teria um efeito discriminatório, humilhante e hostilizador das mulheres que se encontram confrontadas com a decisão de interromper a gravidez até às dez semanas, inviabilizando que elas possam procurar, sem qualquer estigmatização, o apoio e a orientação possível e necessária junto do sistema de saúde público. Nesta dimensão, a despenalização até às dez semanas, que só a vitória do "sim" garante plenamente, é que pode representar um contributo para a redução radical da clandestinidade do aborto e consequentemente uma garantia segura para a saúde física e psíquica das mulheres.
A segunda razão tem a ver com o próprio resultado do referendo. Com efeito, nada legitima que, em caso de uma vitória do "não", se pretenda fazer passar a tese de que o referendo permite neutralizar o efeito penalizador da lei cuja alteração os eleitores rejeitaram no referendo. Seja ou não juridicamente vinculativo o resultado do referendo, não se me afigura possível fazer depender o seu resultado de uma interpretação do "não" que, além de não ser consensual (longe disso!) entre todos os que assim votam manifestamente contraria o sentido literal da pergunta colocada aos eleitores!
Só uma resposta "sim" pode garantir a abolição da pena de prisão nos casos de interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, criar uma janela de oportunidade de efectivo combate ao aborto clandestino para a sua redução drástica e responsabilizar o poder política para a adopção de um quadro legal de acompanhamento, aconselhamento e apoio a uma maternidade responsável.
Em suma, uma solução equilibrada e responsável!"
PS: dê-se conhecimento a D. José Policarpo, ao heterdoxo Não do doutor Marcelo e ao Estado do Vaticano (via Joãosinho César das neves), accionista de alguns grupos económicos. O sublinhado é nosso.